terça-feira, 13 de outubro de 2015

TODOS ESTÃO CONVIDADOS

DESCRIÇÃO:

       O Projeto AS DONAS DA RUA, na última sexta feira, nove de outubro de 2015, dividiu a calçada da Avenida Paulista com vendedores, artistas e moradores de rua. Montei uma “casa”, em frente ao Parque Trianon,  similar às que tenho visto nas minhas andanças pela cidade, um tipo de moradia de quem vive na rua, barraca feita de plástico preto, fixada em grades de parques, prédios, lojas, etc… Amarrei dois metros do plástico em duas grades do Parque Trianon, dando um nó em cada uma de suas pontas. Duas latas de tinta foram colocadas na parte da frente, esticando o plástico. A barraca estava montada, duas eram as aberturas laterais. Uma delas servia como porta de entrada para os convidados. O chão da casa foi forrado com caixas grandes de papelão e um cobertor “reizinho”, usado por moradores de rua. Dentro da casa tocava uma trilha com as gravações coletadas dos depoimentos das moradoras ao longo de todo projeto. Deixei-a tocar repetidamente. Coloquei um caderno e algumas canetas em cima do cobertor para quem quisesse escrever, da mesma forma que faço quando converso com as moradoras de rua, quando ofereço caderno, lápis de cor e canetas para livre expressão.
         Do lado de fora, dois jovens convidavam as pessoas a entrarem na casa e ouvirem as histórias gravadas. Ficamos ali durante três horas.
         Eu permaneci  a maior parte do tempo deitada em um dos cantos dentro da casa: um cobertor sobre o corpo, uma touca de lã na cabeça e roupas velhas. Uma mulher sem fala, suja e de poucos movimentos.

REPRESENTAÇÃO DO MUNDO:
        
            Eles me observam, uns se assustam e não se aproximam, outros chegam bem perto. Se pisco os olhos, recuam. Para alguns, dois minutos às vezes basta, um minuto. Para outros dez minutos parece pouco. A repetição da história traz uma espécie de entendimento do que já é sabido. O que era distante, torna-se presente. Dentro da barraca somos todos iguais: as mulheres que falam, quem as ouve e eu. Uma massa amalgamada que respira o mesmo tipo de ar. O espaço é quente e estamos vivos. A percepção desse momento faz da caneta um instrumento de fuga e identificação. Corre a tinta pelo papel. O incomodo vira manifesto. O sentimento fala. Uma união de forças que não sabe para onde ir. Mas o que será isso?  O racíocinio insiste em perguntas que não provocarão ação. Que responsabilizam o outro. Mas que outro, se o outro sou eu? Isso  não levará a nada.  Somos tão impotentes. A cabeça se conforta no sim.  Quem são os homens que ajudarão essas mulheres, pensam as mulheres de alguns homens? Como estou vendo essa invisibilidade que tem voz e forma de gente? Eu não quero olhar para isso. Eu não vou olhar para isso. É um direito que me assiste. Os que estão fora e não querem entrar correm dali em direção a outras esquinas, tropeçam no que não é cenário e correm mais. Correm. Os relógios tem ponteiros grandes e é preciso fugir antes que a volta se complete. Vinte e quatro vezes por dia! - Corra!- Vamos comigo? - Te encontro mais tarde. Terei mais tempo depois, agora esse barulho me atordoa e eu não tenho o que fazer com isso. Com essa porção de issos que sou obrigada a me desviar. Saio pulando corpos pelas calçadas, isso atravanca meu caminho. Perco tempo. Tenho tanta pressa, preciso de tempo. Quero sair daqui.  Socorro! Nos tirem do mundo, mas nos deixem viver.  - Olha aquela mulher ali!  - É um guri, rapaz! Tudo mais tranquilo, àquela mulher é um guri e faz parte de outro amontoado de chão. Tanta coisa pra se pensar, e o meu tempo tomado numa barraca que não tem vista pro mar. Meu tempo!  - Vamos, corra! - Olhe, aquela barraca minha senhora. Gostaria de entrar?  - Menino eu não, não vou entrar, não tenho tempo, estou cansada de ver isso. Tem em todo lugar, agora virou moda gente espalhada na rua. Qual a novidade? A cidade há tempos é uma sujeirada só. Fede. 
         A caneta é alcançada de longe, uma extensão do braço, há nojo por ali, mas os papelões são limpos, o cobertor é novo, a mulher ali deitada é apenas uma mulher deitada. Tudo é ficção. O nojo nos protege do mundo. A moça, de vinte e poucos anos, senta perto da saída, sempre há uma possibilidade de fuga. Ela fica longe de mim, longe do corpo. Inspira profundo no seu expirar sem pausa o nojo que dessa vez a aproxima do mundo, esbofetea e sacode todas as desculpas. Não se procura o humano num jogo de esconde-esconde, atrás da porta, agachado em um canto com dedo na boca pedindo silêncio. Ele está tão perto, submerso, enganchado em qualquer parte da sua biografia. Pode dar as caras a qualquer hora ou não. “ A invisibilidade social causa uma dor imensa tanto para quem sofre dessa ausência de olhar, quanto para quem é ator/agente que despreza essa situação(…)
         Eles, os jovens, continuam entrando e não são poucos. São curiosos e tem medo, mas acreditam, alimentam-se da vida. Os mais velhos tem preguiça e olhos acomodados. Sentem-se derrotados pelo mundo que criaram. A desgraça há tempos trançou-se nos dias. Não parece haver solução. Tudo é um arrastar pelo tempo. Tudo é repetição. Cultiva-se a estranha desesperança do existir.
         Permanecemos, o espaço é pequeno e o plástico preto esquenta, o que é fora aos poucos perde lugar. O som da Avenida  Paulista fica baixo, há silêncio contemplando as árvores do Trianon que são belas. Um bolsão de isolamento torna a vida dentro de uma barraca de plástico possível de ser vivida. Mais uma bolha que respira na cidade de São Paulo. As horas passam, os convidados entram e saem, deixam escritos no papel. Ações. Observo partes de cada corpo, não nos encaramos. Como fotografias, as imagens armazenam-se na memória. As imagens que são sons e gestos. Posso esquecer onde estou. O calor não é mais temperatura no corpo. O chão e o tempo. Como grama sobrevivente no cimento são as moradoras de rua. Criam flor.  Suportam a existência de não existir. Reclusas em seus casulos deixam que o mundo fora não seja nada. Dormem o tempo de espera, encolhidas no útero quente e escuro até a última contração.


AFETOS:



Primeira calçada:
1 Senhor
2 Mulheres de trinta e poucos anos
15 Jovens


2 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pela perfomance, pelo relato, pela sensibilidade de traduzir uma certa realidade. Adorei a experiência!

Paulo Bueno disse...

Uau, Bia que experiência incrível! Quanto aprendizado possível sobre a já conhecida "invisibilidade" destas pessoas... parabéns por estar descobrindo e executando cada vez mais caminhos para abordar e sensibilizar sobre este fenômeno surreal e terrível que vivemos na nossa cidade: o desprezo por quem está no chão da rua.