Aprendi
a viver de amores. Troco o rosto,
o papelão, o lado. Os nomes eu não
me lembro mais. O meu? Nunca gostei de ser a mesma pessoa. Prefiro os que
começam com S. Já tive mãe e
nenhum pai. Várias casas e pouca roupa no corpo. Olho para o céu e a cabeça
fica amarrada pela boca, presa na
primeira estaca. Escorregam por mim palavras que não consigo dizer. A mãe sempre
colocou padrastos em casa. Tive que saber andar antes dos primeiros passos. Na
rua a vida começa no dia anterior, vivemos de madrugadas, é sempre frio e os
cobertores não aumentam os graus. Preciso de um corpo que se grude ao meu para
não cambalear sozinha por aí.
Ele
foi vender bala no farol e já volta. Ele é flanelinha, ganha uns trocados. Cata
latinha. Temos um plano. Vamos alugar nosso quartinho, já tenho um colchão de
casal. Meu amor por ele não é
feito de palavra, eu não acredito nelas, vem de uma coisa de dentro, um ar que
fica quente e aumenta de tamanho, parece que vou sair voando. É uma febre que não
sara. Queima, e eu nunca quero que
passe. Ele é como um ônibus que me leva pra casa, que eu nem sabia que
tinha. Casa, com flor no vaso e papel de parede. As paredes são pintadas de azul e o chão é de porcelanato. Eu ando
feliz de um cômodo para o outro. É um passeio dentro de mim, eu sou a dona de
tudo. Ele me deu de presente o que
faltava em mim. Às vezes ele bebe na esquina, paquera uma outra, mas quem ele carrega na cacunda e faz cafuné sou eu. Eu
preciso de um homem pra amar. A noite é muito longa quando eu tô sozinha. Um
dia ele me bateu, mas foi sem querer, ele disse, tinha tomado cachaça. No dia
seguinte chorou, falou pra eu não largar dele. Eu pensei em ir embora, mas não
tive coragem. Se ele fizer de novo, só mais uma vez, aí não respondo por mim. Posso
acabar com ele, mato ele envenenado e tomo outro rumo na vida. O amor é assim,
faz a gente morrer várias vezes, ou matar. Não tenho medo. Tem uns que deixam a
gente mais feliz, nunca se sabe por quanto tempo. Quando fica ruim e me dá na
telha eu fujo. Posso passar a vida toda fugindo. Muita gente faz isso, vai
inventando um motivo pra vida fazer sentido. Não sou burra, todas as coisas têm
o mesmo nome nas línguas diferentes do mundo. Posso não ter estudado nem ter ido muito longe, mas conheço
de tudo. Love é amor em inglês.
Vou
tirar meus documentos, criar uma identidade. Ser vendedora de loja, trabalhar
em restaurante, fazer faxina, ser encarregada numa fábrica, ter um nome e casar com papel passado. Vou ser alguém fora da rua, das oito da manhã
às seis da tarde, com carteira assinada e INSS, daí, no resto do tempo, assumo
o meu nada com nome e RG registrado. Vou ser livre para ser infeliz sem hora
marcada. As pessoas inventam essas datas pra disfarçar o tempo. Na rua não tem
disso, fica de dia do mesmo jeito que fica de noite, o mês pode ter qualquer
nome. Uma única coisa que eu sei, é que hoje eu tô aqui. Amanhã, ninguém sabe. Hoje
eu tenho esse amor, se não fosse por ele, eu já tinha morrido ou me matado. Já
fui que nem poça de água parada, verde bem escuro, não dava pra ver o fundo. Tudo sem movimento, cada
dia era um dia a mais para ser esquecido. O amor sacode a água, às vezes a gente
se afoga, rala a barriga na areia, sai por aí sem rumo, mas passa um pouco de
tempo, aparece um outro cara, pra mim é sempre assim, vou levando. A vida
continua, aparece outro que dá mais sentido pra morte. Esse de agora é tudo que eu tenho. Ainda não arrumei
emprego, ele que me protege.
Quando eu for pro outro lado, porque eu acredito que tem vida depois da morte,
ele vai ficar com saudades.
Tem
homem que gosta da mulher que manda, esses parecem mulherzinha. Fracos, a
mulher é que é forte. Eu sou forte,
mas não gosto de mandar em homem. Já me virei muito sozinha, me viro. Gosto de fumar um cigarro, beber minha
cerveja. Também gosto de batom, bolsa e maquiagem, sou igual a qualquer mulher,
se eu não morasse na rua, tinha um
monte de homem atrás de mim, eu ia fazer eles de bobos. Homem sem mulher não é
nada. Mas eu não desprezo o meu. Também gosto de mulher, tive só duas. Mulher
entende mais de mulher.
Tô
carregando um bebê na minha
barriga, eu tentei tirar, quase morri
e o bebe não saiu. A barriga continua crescendo. Tenho que ir no médico, mas
por aqui é difícil e eles tem nojo da gente, de colocá a mão. Meu namorado falou que vai me acompanhar.
Homem tem que acompanhar a mulher. Não fiz o filho sozinha, depois tem que me
ajudar a criar, não quero largá meu filho como minha mãe me largou. Todo dia
ele busca comida pra mim, acha que eu tô muito magra, já tô de sete meses, não uso
crack. Já usei, mas agora eu tô limpa. Sou moradora de rua, mas não como
qualquer coisa, outro dia tava
cheio de bichinho branco na comida que deram pra ele. Eu joguei tudo no lixo. Aceito esmola, mas
não vou comer coisa estragada. A comida tem que ser boa, um prato de arroz e
feijão quando tá fresco me enche de felicidade.
É
isso aí o amor, um prato de arroz e feijão mais umas mentiras que viram verdade. O que eu mais gosto desse
meu namorado, do Jeferson, é do jeito que ele me põe no colo, ele só tem um
braço, mas o abraço dele foi o mais forte que eu já recebi. Perdeu o braço
quando era motorista, tinha bebido e teve que dirigir, o patrão sabia que ele
não podia. Era sábado ele tava de folga, o velho insistiu. Depois disso, perdeu
o emprego, foi preso. A moça do outro carro morreu. Ele ficou traumatizado. O
patrão fingiu que nem sabia, a vida do Jeferson acabou, quando saiu da cadeia virou morador de rua. Quem sabe
agora que a gente tá junto e vai ter neném, nós podemos
mudar tudo. Um sonho é morar na praia, ele pode vender coco, ou pastel. Ele já
tem o RG, eu vou tirar o meu, precisamo do dinheiro da passagem, do documento e
de coragem. Se não der certo a gente volta. Já tamo acostumado aqui, com o
cheiro da Avenida Paulista, as buzinas, esse monte de gente que passa. Juntando
o que dão num dia não pra muita
coisa. Depende como ele tá, se começa a falar do acidente, vai pro bar compra
cachaça, torra tudo que a gente tem. Dessa vez acho que vai dar certo, tenho um
dinheiro escondido, já dá pra uma passagem. Qualquer coisa eu vou primeiro.
Um comentário:
Conto lindo e comovente d+. Parabéns Bia!
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