DESTITUIÇÃO :
Primeiro
seus gritos provocaram espanto, por que você gritava tanto, especialmente nas
primeiras horas da madrugada? A sua voz era parte de um mundo de destroços. Um
mundo que ressoava em mim desde a infância: de crianças pedintes nos faróis em
dias de chuva, de mendigos, de ciganos lendo palmas da mão em troca de qualquer
moeda, de aleijados vendendo balas para comprar uma cadeira de rodas, dos que
ficavam do lado de fora da Igreja da Sé, deitados nas calçadas no Largo do
Socorro, na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, ruas que ficaram na minha memória.
Você tornou-se o receptáculo dessa indignação.
Os seus
urros chegaram aos ouvidos das casas sobrepostas, coladas umas às outras.
Camadas de famílias indo em direção ao céu. Vivem como um empilhado de
processos arquivados sem solução. Os esquizofrênicos dos andares molham o dedo
na língua para virar as páginas, mas os papéis de tão antigos, adquiriram forma
e não se desgrudam mais, são partes no corpo. Blocos de poeira, posses e rancores.
Você, Toinha, dói nos espaços entre os ossos, nas cartilagens que secaram, em
cada vão dos tacos, desnivelando o chão. Cada grito seu é uma palavra proferida
por eles, maldita e sem articulação. Fere, e a família se decompõe num lento
caminho de abismos. Despencam pais, filhos e irmãos. Por isso precisam dos seus
gritos Toinha, da sua loucura Maria, enquanto a deles goteja em vasos com
flores brancas e frescas, no mofo dos porta-retratos, nos castiçais das velas
que nunca foram acesas. Você é a voz do silêncio nos almoços de domingo, nas
discussões de olhares que flamejam sem promessas de cessar fogo. A melhor
palavra derrotará o inimigo: pai, filhos, irmãos, não há
perdão nem arrependimento. Os seus gritos são lançados, sobem
e trincam os poucos afetos. Os cofres-porcos quebram e deles caem as
moedas, as galinhas ciscam buscando a sua parte. A natureza do homem é feita de
migalhas e estilhaços. Querem te tirar das ruas porque não conseguem livrar-se
na água quente do banho do que já virou pele.
Eles são os
que dividem o mundo entre os seres de raça e os vira-latas. Esses, Antonia, que
cochicham e pedem sua remoção para limpar o bairro, para secar a franja da moça
que passava com o filho e um dia você cuspiu no cabelo dela, porque eles
corriam com medo de você. Esses que pedem que a leve, tomam comprimidos para
dormir, assim as vozes do mundo cessam e quem sabe na manhã do dia seguinte, o
sonho possa ser lembrado por inteiro.
O moço que
manobra o carro passa e te chama de Maria, você foge andando rápido, cabeça
baixa e gritando, sua estrutura racha. Ter o nome trocado poderia ser uma
possibilidade de fuga de um mundo que foi hostil e te partiu em pedaços, quando
você perdeu seu filho, uma das versões da sua história. Então poderia ser
melhor não ter um nome, nenhum tipo de identidade. Maria é mãe de Jesus, quando
dizem este nome, talvez a dor num movimento contrário, rasgando a pele,
clame pedindo pelas bençãos que lhe foram roubadas.
Soube que
você dormiu na casa de uma mulher e agrediu-a na cozinha. Uma pancada pelas
costas e ela foi ao chão. A mulher era dona de um porco cor de rosa e andava
com o bicho na coleira em ruas da cidade. Alguma forma de encontro. Soube que
você perdeu um filho adolescente. Soube que separou-se do marido. Soube que era
de família classe média. Soube que seu nome é Joana. Que viveu uma separação.
Um enlouquecimento. Que alguns pensam que é Toinha. Que tem cinquenta e tantos
anos. Soube.
Talvez
queira lavar as roupas? Escovar os dentes? Um abraço apertado? Tomar uma sopa?
Deitar no sofá? Ver o mar?
Os
manobristas dos restaurantes, os meninos que gritam dos apartamentos gostam
quando você urra, um circo de horrores se forma. Gente. A fila dos clientes que
esperam mesas para jantar ri. O macaco pula na cela aberta. Outros gargalham
quando você, nua, usa a rua como parte de qualquer casa. O macaco defeca na
cela. As mulheres fecham os olhos e você se banha. Um corpo nu, lavando-se na
água parada. Os restaurantes tremem em suas construções, mas não saem do lugar.
Um corpo foi
encontrado no centro da cidade, era uma mulher de quase sessenta anos, atearam
fogo, outro foi encontrado violentado perto do CEAGESP, era uma mulher, trinta
e poucos anos, outro perto da estação da Luz, era um menina, dezoito
anos. Ontem eu te vi acendendo um cigarro com uma moça que estava sentada na
cafeteria. Senti alívio. A moça continuou na mesa batendo papo, você sentou-se
no chão. Te levei um café e você me agradeceu em silêncio. Sigo caminhando.
3 comentários:
Muita coragem encarar aqueles qua já se tornaram invisíveis antes de nós ....
Cruel este viver. Dar voz a essa crueldade contundente e não querer o silêncio. Parabéns Bia!
Bia, seu olhar e sua escuta são admiráveis! Comovente.
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