Eram três que ficaram sem
nome. Mais dois. Três crianças e dois adultos. O dela era Gabriela. Embaixo da
ponte tinha árvore de Natal, fogareiro, garrafa de água. Tinha colchão também,
carrocinha, carrinho de bebê e boneca Suzi. Tinha o bebê. Panela cozinhando
arroz. Paraisópolis era a casa, o trabalho a ponte. A pequena quem me contou e
a vó tentou jogar palavra por cima, tapar a fala, mas a menina já tinha começado.
Os olhares se engancharam. - Tia, tô na escola. - Que escola, menina? - Ele vai
pra creche. - Que creche, menina? Umas palavras que não grudavam nas outras. A vó era brava. -
Pro próximo ano, perto de casa, Gabriela falou. A menina escondeu o olhar por
trás das pálpebras. - Há quanto tempo tamo aqui? O irmãozinho via as fotos no
meu celular, apertava o botão e subia no meu colo. Movimentos e olhares. Mãe,
vó, ela e eu. O que era tempo pra ela? - Faz tempo, ela mesma respondia. Eu
repetia a pergunta da creche já sabendo que ali tinha um furo que não era o que
elas tentavam tapar. A creche era do lado da casa, a escola também. Existem
tantos tipos de furo, meu Deus! A pobreza escondendo-se e disfarçando-se de
pobreza maior - Será que dá tempo do senhor tapar? É tanto pedido perto do
Natal!
Paraisópolis era a
casa, o bairro, o automóvel na porta, a geladeira repleta, a luz, a água, as
roupas dentro do armário. Paraisópolis era a viagem de férias, o fim de semana
no cinema, o travesseiro, o cobertor. Paraisópolis era muito. A conta no banco,
a poupança, a certeza de um 2016 feliz. Era o Rivrotil, o Dormonid, e o Donaren.
A menina nem sabia. Tentavam esconder seus tesouros debaixo do colchão furado.
Eles na curva, em cima
o viaduto. Os filhos vinham trabalhar com a mãe, a avó e o avô, que àquela hora
estava deitado no colchão, só observava. A carroça em frente não era veículo de
trabalho, era armário. Será por que não poderiam ficar os pequenos em casa com
a vó enquanto a mãe faxinava, estudava? Vale brincar de sonhar? O terceiro
filho ainda mamava, um único mês ele tinha. – Eu queria um barraco, esse era o
pedido da mãe. Paraisópolis não cabia ali. Era muito. Uma escola, a creche que
estava por vir. O que eu contaria se soubesse que eles já tinham um barraco? Por
ali uma garrafa de água, o mamá debaixo da ponte, uma panela de arroz, um
carrinho de bebê, três colchões. Tinha rato, frio, chuva de vento. Tinha três
bebês, dois deles que já aprenderam a falar, mas que não falassem de um jeito a
verdade. Os ruídos dos carros, as garrafas arremessadas e os drogados asseguravam
o trabalho dos seis. O que pensaria eu se soubesse que não eram de um todo
moradoras de rua? Gabriela perguntava, mas não dizia. Os olhos de Gabriela.
Faltava coisa. Coisa que é gente. Os três pais: o da pensão que era
pouca, pai do menino. O que abandonou a filha. E o do bebê, que morreu atropelado.
Sobrava uma vó e um vô no colchão. Um corpo com preguiça com aquele cansaço que
se estende. Sobrava filho: um mês, três e cinco anos, essa era a idade. Sobrava
idade: Sessenta e sessenta e três eram números dos pais. E tinha ela, a Gabriela, de vinte e
dois.
A vó me falou que a comida acabou e que tava todo mundo com fome. -
O super-mercado é ali do outro lado, depois do viaduto, uma rua ali no meio.
Avenida dos Carinás, entrei. Arroz, feijão, carne, farinha, banana, suco,
verdura. Eram seis, e aquilo daria para quantas refeições? Bombons e
salgadinhos ajudavam o gosto bom na boca das crianças. Eram mais quatro os
homens, moradores de rua na frente do super-mercado. Voltei. Dois dias com
refeição? O estômago continuaria fazendo parte do corpo.
De
dentro de um carro alguém estendeu o braço e doou quatro pacotes de bolachas. Era
uma mulher com olhar assustado. Abriu uma partezinha da janela. De longe o
espaço não era neutro. De perto era a Gabriela, seus três filhos e os avôs.