quinta-feira, 27 de agosto de 2015

APARECIDA - DOIS DIAS


A pele do rosto maquiada e suja, os olhos pretos amendoados, borrados de preto, amaciados. Uma pintura em crayon, esse era o rosto de Aparecida, uma mulher de quarenta e dois anos com cara de menina, não moça. Menina de uma certa idade. Tinha ao seu lado Danilo, o namorado, um moço com cara de compromisso, cabelo com gel e camisa de mangas curtas, calça jeans e tênis, um jovem pronto para não estar lá. Ela camiseta cor de rosa, cabelo dividido ao meio, calça leg preta e um broche de flor com pétalas que não chegavam a colorir: cinza, rosa e pretas, amarrotadas voltadas para baixo. O broche alfinetado no peito que, se pudesse ve-lo dentro,  vería também em rosa, cinza e preto. Eu que era quase da mesma altura, outra idade, quase com as mesmas roupas, outra cor de camiseta, não levava uma rosa no peito, calçava o mesmo tipo de sapato de Danilo, estava chegando. As tiras brancas da sandália de Aparecida eram bifurcações entre os dedos, caminhos. Haveria uma outra possibilidade nos próprios pés? O chão se abriria em dois? De que lado eram obrigados a ficar? Dali até a outra esquina, até a próxima praça? Quão mais longo era o caminho? Para onde iriam com os pés calçados e bifurcados, com as solas do tênis comidas pelo asfalto, com as tiras da sandália cedendo para o tempo? Esperariam anoitecer? Esperariam que eu fosse embora, para borrar os olhos, espalhar o gel, recolher as pétalas? Naquele dia ficamos.
Éramos três que buscavam respostas. Em pé, equilibrávamos nos calcanhares os anseios. Aparecida falava e eu queria todas as letras, todas as pausas, a sua falta de lógica. Ela omitia partes da verdade, da mulher que era, mas aquele era o todo, e era desenhado por delicadezas nos gestos, na fala rouca, nos riscos de esmalte das unhas dos pés, nas flores esmaecidas.
Conversamos em pé dentro da sua casa feita de dobraduras de papelão, de sacolas de papel, mantas e mochilas. Sem paredes nem vizinhos. Eles, criaturas pequenas,  encolhidas, comprimindo-se naquele espaço diminuto, respirando menos ar, tentando ser menos matéria. Atrás de suas nucas, mas sem tocá-las, alguns poucos metros acima de suas cabeças, na desproporção de uma pincelada, um terreno grande e baldio fazia cenário para o que não era tela nem teatro. Poderiam estar do lado de lá, passeando por salas, quartos e banheiros, filhos na escola, a comida no prato, mas não estavam. Uma cerca que não era grade separava o real do que não era arte nem cenário: um vaso sanitário branco e quebrado plantado na terra, as árvores que não nasceram em volta, uma terra infértil. O que não se contempla. Tudo a nossa volta era cinza.  O muro branco, a pichação preta, o papelão, o cobertor furta cor. As mulheres que vivem nas ruas são cinzas? As mulheres que vivem dentro dos casúlos multicoloridos também são?
Enquanto Aparecida falava comigo, Danilo, o moço de vinte e poucos anos, andava pela casa como um filho sonolento que acabou de acordar. Papelão em papelão. Pronto para ir para escola, para o trabalho, para esperar em pé o dia seguinte. Aparecida era a mãe de Danilo nas ruas durante o dia. E à noite, quem dava às ordens? Quem dava às aulas? O que faziam do tempo que tinham? A idade dele a metade da dela. Precisavam dos documentos, da identidade, essa era a decisão. Desde quando? Quantas repetidas vezes? O tempo. Nas mãos de Aparecida a providência divina,  pediu que eu lesse  -  A misteriosa providência que permite sofrerem os justos perseguição às mãos dos ímpios, tem sido causa de grande perplexidade a muitos que são fracos na fé. Alguns se dispõe mesmo a lançar de si a confiança em Deus.[…] Deus deu suficientes evidências de seu amor, e não devemos duvidar de Sua bondade por não podermos compreender a operação de Sua providência[…] Jesus sofreu por nós mais do que qualquer de Seus seguidores poderá sofrer pela crueldade de homens ímpios. - O Grande Conflito ,p 47. Carregava aquelas letras de cabeça para baixo, talvez Danilo lesse para ela todas às noites antes de dormir? Onde se escondiam todos os dias que não fosssem aquele?
Combinamos de eu estar lá no dia seguinte, tiraríamos as fotos para os documentos e conversaríamos um pouco mais. Voltei às 16.00hs,  Eram quatro que me esperavam, estava lá um amigo de Danilo que fez amolecer minhas pernas, acelerar o coração. Os olhos dele saltavam com raiva até quase me esbarrar, os dentes trancados nos lábios, acenei com a cabeça e andei em direção ao estacionamento próximo. Era eu um bloco de pernas e braços sem pensamento. Aparecida e Danilo no mesmo compasso. Primeiro, as fotos De Danilo que parecia estar lá por engano, tinha mais gel nos cabelos, mais sola nos sapatos, mais sorriso no rosto. Aparecida e eu, sentamos na entrada de um estacionamento próximo. Poucos carros e a autorização do dono. Ela inicia a conversa de maneira fácil, parece que me esperava para contar da vida, sem parágrafos nem vírgulas, precisava esvaziar-se de tanta história os anos comprimidos num jato de acontecimentos. Começou pedindo  para que eu comprasse bala ou água para venderem no farol. - Revirar o lixo dá doença. O Danilo trabalha como flanelinha, o dinheiro não da pra comer, só pro café. Não pego comida onde eles dão pro pessoal da rua não. Hoje foi a terceira vez. Tô dormindo na ponte de frente do abrigo. Já fui empregada e babá em casa de família. Meu marido morreu, era caminhoneiro. A gente morava em Governador Valadares, morreu de batida de caminhão. Tenho quatro filhos, tudo dele. Eu tava grávida de gemêos quando ele morreu. Tenho uma de 23 e outro com mais de trinta. Os filhos nasceram tudo aqui. Eu morei no Treme-Treme. Não tem o Treme-Treme que foi derrrubado? Foi lá que eu conheci ele , aí nós começamo a namora, nós teve relacão e ele me assumiu. Graças a Deus. O pai dele que não queria que eu morasse com ele. Hoje em dia as família dele não gosta de mim. Já tenho oito netos, meu filho o mais velho é o Ricardo tem 24,  outra tem 23, outra tem 22, outra tem 21, é tudo diferença de um ano. A outra tem  18, e 17. A caçula tem 13 anos. Conto sete. – Tá tudo estudando. Graças a Deus. Vejo todo mundo, todos eles. Não se dou com o marido da Viviane. A minha caçula mora com a Viviane, 13 anos, ela é mais alta do que eu, uma índia, bonitona, ela é uma índia verdadeira, eu sou índia cabocla. Perdi meu apartamento, bati rolo no barraco, o Paulo Maluf que deu. Só que a mulher falou que quando eu tira meus documentos é pra eu ir lá conversar com ela, aqui no Vale do Anhangabaú, onde mexe os negócios do papel, pra ver se pego meu apartamento de volta. Tive ordem de serviço fui mandada embora. Trabalhava no Extra como faxineira. O Danilo vai morá comigo, não usa drogas, só o cigarro. Os cara querem usar droga, dou conselho pra ele não usar. Ele sempre vai atrás de mim. Se nós briga, ele vai ver onde eu tô. Meu marido era bom, me carregava na cacunda, treze anos juntos. E o filho de mais de trinta? Tudo do mesmo marido? A caçula tem treze. Eram gêmeos? Há quantos anos o marido morreu? Ela, quarenta e dois e o mais velho  trinta?  - O meu marido era gaúcho. O espirito dele é vivo no meu coracão. Seu nome era Aires Soares, quando estou nervosa converso com ele. Deus e ele, fecho os olhos e vejo ele. Foi batizado nas águas, vou na Igreja Universal da Praça da Sé. Quero qualquer serviço: de gari, pra fazer faxina, perdi o endereço. Lá no terminal da Mooca, eles ficaram de ver o serviço pra mim e arrumar um quarto, eu tive que me aposenta porque tava com dedo quebrado e o braço também. Aí eles não me deram a minha carteira, foi lá no Extra. Pra busca tenho que pega o trem e o metrô. Eu vou busca, eu era encarregada, preciso volta lá, depois que tirar os documentos eu volto lá. O Danilo tá precisando de chinelo, meu filhos estão criados. Tem uns lá na Paraíba. Eu vou falar com a Viviane, o Danilo pode trabalha pra limpa carro, vou levar ele comigo pra tira os documentos, ele tá como indigente, sem cartão do SUS. Eu mostro meu documento do remédio pra pega comida. Não uso droga nem ele. Ele engravidou a mulher, que traiu ele, e a mãe dele foi pro lado dela, aí só acreditou nele quando viu com  olhos, mas o Danilo já tinha ido embora, largou a família porque ninguém queria acredita nele. Ele morava lá no Ermelino Matarazzo, bairro das Pimentas, ficou assim porque a mulher traiu, ele me chamou para  ver a filha dele. Não quero ver a mãe, nem a ex-mulher, se for ver ela, não vai presta, também vou ter que ver meus ex. A mulher dele não quer ver a cara dele porque ele tá comigo. Eu não conheço ela. Eu já tive vários namorados, por causa da cachaça larguei deles. Antigamente não tinha rapa levando o que é seu, agora os meninos de rua levam tudo, o caminhão leva tudo, não quer saber se tem documento, leva tudo, roupa, documento, vai jogando no caminhão, pegam tudo, por isso tem ladrão. Eu votei nela, falou que ia tirar nós da rua. Esse prefeito aí o Haddad, ele é cruel, não é um prefeito fiel, eu votei nele. Nossos amigos verdadeiros são o Veludo e o Roque. Cachorro toma conta e faz companhia. Eles corria atrás da policia e mordia. Se você puder trazer roupa, o Danilo tem sinusite.
Levo as fotos, as roupas, o chinelo do Danilo, duas refeições. No chão, o papelão e garrafas de bebidas. Disseram que a bebida era dela, a cachaça. Onde estarão? A rua não muda de lugar. O papelão molhado fica, a casa se move. O vaso sanitário continua lá, a tela quadriculada protegendo o terreno baldio também. Quem sabe suas orações, o dia do juízo final, a Providência Divina, a realização de um milagre. Ou, como pedaços do papelão,  dobraram-se, desmancharam-se em água, álcool. Voaram com o vento, como fotografias 3x4 descoladas de um arquivo de firma, de obtuário. Quem sabe Danilo de RG 88.765.456-X e Aparecida, sua noiva, sua menina. Na Penha, no Barroso, na Sé...
  

* O Relato de Aparecida é de meados de 2013. Minha ideologia política não está expressa neste texto.  


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

ELISA


- Dona, eu sou má. Trinta e cinco anos. Já fiz de tudo, já roubei, enfiei faca. Sofrimento de verdade, dona. Não conheci meu pai nem minha mãe. Quem sabe se eu tivesse tido pai e mãe eu seria uma pessoa diferente. Fui criada na FEBEM. Quem sabe se você tivesse pai e mãe você fosse uma pessoa diferente? Quem sabe, Elisa? - Todo mundo precisa de um caminho, senão nos sentimos nada. Ficamos na rua vegetando. Ex-presidiária, palito nos dentes, folga duas vezes por semana. Cabelo de reco, setenta e oito quilos. Era ele. Talvez um pouco mais, oitenta. Era ela. Ombros largos, mãos grandes e um sinal de positivo. Sorriso e avental brancos. Era ela Elisa. Era ele Elisa. Piercing na boca, dentes grandes. - Esse pessoal que vem pra cá, só vegeta, moça. Quem sabe se eles tivessem pai e mãe, não vegetassem? Quem sabe o sofrimento mudasse de nome? De cheiro? Nem existisse? Fosse o dobro?
Passei por lá, começo de tarde, uma, uma e pouco. Eles almoçados das onze horas. Depois, só o lanche das duas. O dia fracionado para se alimentar. Bebês com papas programadas. O relógio do dia, o estômago. No refeitório, duas mesas brancas e grandes de fórmica, três atendentes passando de um lado para o outro, três toucas, três aventais brancos. A rua cheia, o refeitório vazio. A tv trabalhando em silêncio e o burburinho do lado de fora.
- Volta mais tarde, já já eles entram pro lanche. A maioria que frequenta aqui é homem, viu moça? De vez em quando vem umas por aqui, só de vez em quando. Onde comem as mulheres, então? Onde se alimentam as mulheres? Onde é a cozinha delas? Qual comidinha? As panelinhas? O papá? No imaginário de qualquer menininha as xícaras e a mesa. A boneca sentada ao lado. - Abre a boca. Abre a boca e a comida que não está lá. Onde comem essas mães meninas mulheres crianças velhas da rua?
- Ok, volto mais tarde. Subo a ladeira de quem mora na rua. Vinte minutos. As calçadas lotadas de homens esperando a hora de lanchar. Uma e trinta e cinco. No último quarteirão, um shopping. Casa dos que almoçam em pé. No balcão, os atendentes também guardam os cabelos para que não caiam na comida. - Um suco e uma salada. Mastigo em silêncio até alguns minutos antes das quatorze horas.
A porta de vidro, a descida e uma rua inteira sem cor. Cinco para as duas. O lado de fora daquele lugar higienizado é uma calçada esburacada e faminta, cheia de gente. Os espalhados e mais outros, uma única mulher. Uma grande família em fila caminhando para a refeição. Uma família de homens esfarrapados e fedidos. E se eles tivessem tido pai e mãe, Elisa? E se tiveram? Pais e pais. Homens, só homens. Guardadas no cabelo de todos: histórias, insetos e nós. A única senhora não quis falar comigo. Eu, esperando que o medo desaparecesse entre os dentes. Quantos seriam? Quarenta, cinquenta? Dois homens miseráveis e famintos? Um? A comida vinha junto com o cheiro da falta de banho, das mantas imundas que não aquecem nem esfriam. Doze ou vinte e cinco graus? Castigados por todo tipo de droga e sentados ali para lanchar. A cabeça baixa, eram meninos obedientes e desdentados à mesa na hora do lanche. Ombros colados nos ombros, em silêncio, com o copo de suco nas mãos. Entrariam e sairiam toda vez que o gongo tocasse o relógio da fome. Eu, na mesa ao lado, falava acelerada sem abrir a boca, corria quieta sem me levantar, me aproximava mesmo que longe. Esperava por uma única mulher que não vinha. Elisa, voltou - Hoje a senhora não deu sorte não, as vezes aparece uma ou outra. Hoje veio só homem. Eu trabalho aqui, mas  também sou moradora de rua.
Tatuagem no braço e na mão. Tatuagem que já não era imagem. - Tô aqui cumprindo pena, tenho salário. Faço esse trabalho e eles abatem da pena. Me sinto útil aqui. A gente tem que se sentir útil, dona. Senão a vida passa. Só tô aqui por causa dela, minha mulher. Uma história de amor. Torço eu pelas histórias de amor.
- Porque agora eu sou um ser humano de verdade, porque antigamente eu não era não. Eu era bicho do mato. Antes, eu era sensível e as pessoas só me dando pra trás, tentando me matar, então eu comecei a ser ruim também. Enfiei a faca pra matar, dona. A faca na mesa, eu e Elisa. Nossos poucos gestos. A história que não era outra. Tudo que não era ao todo verdade.
- E depois, Elisa?
- Depois nada, só viver. Nós morador de rua não pensa, nós não tem ninguém. Nós também não vai sofrer porque niguém vai ligar pra nós. Eu não tenho nada a perde, fazê o que então? A pessoa nunca tem oportunidade, dona. Eu, é a primeira vez depois de trinta e quatro anos. Uma aliança prateando a mão direita. - Tenho minha mulher, dona. Tenho amor. Eu vim pára aqui, porque a moça, a minha namorada, a minha mulher, me levou pra faze inscrição. De trezentos, quatrocentos que passa  por aqui, só uns dois fica fazendo grosa, pensa que nois é escravo deles. Tem que ter estrutura boa pra trabalhar aqui nesse lugar. Aqui nós escuta tudo, tem pessoa que tá aqui e fica comendo e xingando. Não sabe agradecê. Eu já usei várias drogas, mas parei tem 22 anos. Vinte e dois anos que eu não uso mais droga e não bebo. Eu era uma cachaceira das piores, lá da baixada do Glicério. Só vivia com a cinquenta e um na mão. Eu falava pra mim, um dia eu vou parar. Demorô mas eu consegui, tô dando valor pra mim mesma. Tô aqui aprendendo a viver. Se a gente fala pro pessoal, eles não escuta, aí vai pará na cadeia, toda fudida, desculpa a palavra. Aí que você fala que aquilo não é pra você. Entendeu? Eu tive na cadeia desde os meus 18 anos, sai agora faz cinco. Foi em 2010. Fiquei 5 anos, 4 anos, 3 anos, 2 anos, 1 ano e 9 meses. Eu ficava um mês na rua e cinco anos na cadeia. Dois meses... Eu não vivi nada, a real é essa. Olha moça, eu era das piores, das piores. Não tinha medo não, agora eu tenho medo, tenho algo a perder. Antes, na rua, eu pensava em me matar.Todo mundo batia a porta pra mim porque eu era sapatão. Aí essa mina, aí a Amanda me ajudou, porque eu já tava bebendo de novo. E os 22 anos? Aqui eu ganho 700 reais. Eu tava sem lugar porque a prefeitura tiro nois da onde a gente tava. A prefeitura tá fechando tudo, não deixam lugar pra gente mora. Lá onde eu moro, eu cuido de dez cachorros.
E eles, os outros, os que não falam, os que se arrebentaram no álcool, os que não tem trabalho, os que ainda estão por aí tentando viver, doentes, esfomeados, alucinados, esfarrapados. Os que se fecharam em si antes da prefeitura? Esses uns, tão próximos? 
 - Dez cachorros? 
 - É dona, eu e minha esposa. Nois pega na rua cachorrinho que fica sofrendo. Pelo menos eles vão dá valor pra gente. Nois mora ainda debaixo da ponte da 23 de maio. Sabe, moça, outro dia  eu vi minha irmã. Minha irmã, moça, depois de dez anos. Pensei que nunca mais eu ia vê ela. Ela veio aqui, eu chorei, lógico. Achei que eu ia desmaia. Eu vivo bem dona, se eu falo que não vivo eu tô mentindo.


R. Dr. Penaforte Mendes 



    
               

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

TÁRIKA VANESKA VIANNA

Como castelos de cartas de baralho, temendo um assoprão de vento forte, de carro de polícia, das mãos da falta de sorte, estendidos um ao lado do outro, ocupando parte da calçada da avenida Nove de Julho, parte da cidade em que vivem, parte da terra que não puderam comprar. Feitos de nylon, ziper, papelão e medo, estendem-se um ao lado do outro. Os que querem e os que não querem estar lá. Há os que querem? A multidão tem certeza que sim. No primeiro deles, a bandeira do Brasil forra uma das paredes, pude ver a luz da brasa do cachimbo iluminando o rosto, do homem, da mulher, do menino, só o vulto. A vida colada ao chão faz imagem, mas não poesia. Casas de família feitas ao acaso,   na junção dos acontecimentos. Lá, onde a chuva entra e não sai, existem amigdalas inflamadas, unhas  esmaltadas, dentes careados, fuligem de carro que já é pele, e pulmões. Em frente a elas, andam três que vão e voltam. Arrastando suas capas de super-heróis do cimento e varrendo as calçadas até chegarem a um fim imaginário, um após o outro. Deixando trilhas: pedaços de espuma, poças de urina, restos de comida. A mulher fala sozinha e responde baixinho. Os homens: um bebe numa garrafa vazia, o outro tosse e depois fuma ou fuma e depois tosse. O ponto de chegada é o mesmo da partida.
Do outro lado da avenida, bem em frente, habitantes dos pés de uma escadaria fazem um churrasquinho com vista para o corredor de ônibus. Poucos eram os espetos, muitas eram as bocas. Eu, que desta vez passo e não fico, caminho na linha imaginária, respiro, e o que entra pela narina, ouvidos e boca gruda em alguma parte minha empurrando meus passos para os próximos passos.  Subo os degraus em frente, não esbarro em quem desce, só olhares e o meu coração que acelera. Uma guarita desocupada e o segurança  de costas, com cassetete nas mãos, revólver, gravata e alguma roupa. Pergunto pela assistente social que não estava. Não esteve. Há alguns dias parece que alguém a viu. Ele me conta das brigas, dos canivetes, das mortes, enquanto o som de um helicóptero abafa nossa conversa, ninguém corre. Desta vez o tiro, susto, furto, não era ali.  Ele continua falando com olhos escancaradamente geométricos, rodando 360 graus, os meus só os acompanham. O vapor  do corredor em frente chega até mim, me convida. Banheiros à direita, salas e murais, à esquerda. Peço licença e entro, a água bege escura que escorre dos chuveiros traça caminhos interrompidos nas paredes como linhas das mãos de curta duração. Os azulejos choram, e não são os únicos, ouve-se o som da dor e dos pingos de água,  a sujeira que desce  entope o ralo, a água não escoa, temos todos os pés molhados de sujeiras diferentes. Quem sabe disso?
Quadros de cortiça pendurados, cursos e oportunidades de emprego. Brilham  os azulejos de possibilidades. Corredores de portas fechadas. Seria possível  encontrar a assistente social em alguma delas? Escondida debaixo da mesa, dormindo a insônia da impossibilidade? O lugar era grande, mas sem refeitório, só banho, bancos e vãos margeados de gente. A Xuxa na tv, a roupa para lavar e o varal para estender. Passa por mim uma moça de camisa de flores, passa e não me vê.  Olhos azuis escuros, voltados para dentro. Algumas poucas palavras e descubro que também estava à procura da assistente social.  Sentamos no último degrau da escada que leva às barracas  de nylon, ao churrasco, à fuligem. Seu nome é Tárika, o meu Beatriz. Conto do meu trabalho, ela da tentativa de buscar R$ 80,00 reais.  A assistante não foi, Tárika não recebeu o auxílio, no dia do auxílio. Teria que voltar às 17h.00.  Entrar na fila da senha para ter um lugar para dormir. A kombi leva os que chegam antes, era uma ordem feita às 17h00.  Esperam sentados, de olhos fechados e boca aberta a hora da senha. Esperam quase tombando, nos bancos  em que não se pode deitar, o dia acabar, o final da tarde. Esperam horas pelas dezessete horas.
- Comecei cedo com anfetaminas, me sentia gorda. A voz trêmula, os dedos da mão, a língua.  O céu escuro, seus olhos também. Alta, sorriso de aço, ganchos  separando  os dentes que insistiam em se juntar. Forças contrárias. Tudo que era próximo pedia separação. Flores rosas desenhadas na sua blusa roxa. Flores tristemente rosas, despejadas, boiando em uma trama roxa. Caules sem clorofila. Ela, uma beleza encaracolada nos cabelos. No seu alto, na parte que se conecta ao céu, uma copa anelada e sem brilho. Um fio buscando o outro, fazendo nó. Dona de nenhum jardim, dona de nada. Tárika era magra. - Eu malhava, malhava e me sentia gorda, ela dizia. Precisava das anfetetaminas, vim parar aqui. Hoje quando vejo alguém gordo, tenho a mesma aflição. E a falta de banho, de trabalho, os oitenta reais, a comida? Penso eu. -  Não quero ter um corpo assim, um corpo gordo. Volto  mais uma vez meu olhar para os seus olhos que de tão profundos se perderam dentro, uma face de músculos que não se movimentam. Uma boca cheia de anfetamina que fala. - Não uso mais anfetamina. Que mente. - A Anvisa tirou do mercado. Pelo amor de deus por que a Anvisa fez isso? Ela não grita, mas a ouço. Ouço as palavras que se engancharam no aço dos dentes. Nos quarteirões acima, o eco da subtramina, varrido para debaixo dos tapetes persas, de lã, de fuxico. O peso da  nossa carne aflige.
- Moça, enquanto falo com você tem essa voz que escuta o que estou falando. - Você  não sabe como chama isso, sabe? Sei, Tárika, a esquisofrenia tem formas diferentes, não respondo. -  É como se eu estivesse de fora me observando, é horrível, dá medo. Todos sabemos, Tárika.  - Como você se chama? esqueceu que já havíamos nos apresentado. - Sabe, Beatriz, tenho a sensação que vou enlouquecer, aí passa. Não penso que sou louca, porque tenho bastante noção da realidade. Quando acho que não vai mais me acontecer, que acabou, que me tenho novamente, logo me perco. Falo com você, penso no que estou falando, ouço o que estou falando, vejo o meu corpo como se não fosse meu, uma borda. Uma voz que sai, mas que parece que não é da minha boca. Não consigo parar de falar.  Às vezes é assim. Sinto que perdi algo e que agora não volta mais. Como uma roda gigante que na hora de parar sobe bruscamente. Um salto que nunca alcança o chão. Quero descer e estou lá em cima, só desespero.
- Uma, duas vezes, um dia inteiro assim. Um eu que se ouve e fala. Tudo ao mesmo tempo. Esquisofrenia, foi meu último diagnóstico. Quero me curar, só não vou me internar, isso não. Já saí das drogas. Quero alguma coisa que pare esses pensamentos. Já estudei até o segundo grau. Trabalhei de babá, recepcionista, agora não dá pra fazer nada. Perguntei pra médica se ela me achava louca, eu acho ela  muito mais louca do que eu, ficou de me trazer a receita, sabe que eu preciso, não quero ficar assim tremendo. Marca hora e nunca aparece igual a assistente social. Eu venho, elas não.
Enquanto sua mão treme a fala é lúcida e o rosto de Tárika um abismo. - A  minha irmã trabalha numa boate como garota de programa, já se drogou muito também. Eu e ela viemos morar em São Paulo, somos de Santos e temos um irmão aqui, que é rico e publicitário, mas nem quer ver a nossa cara. A última vez disse que não  ia ajudar mais.  Já demos muito trabalho pra ele por causa das drogas. Ele tem razão. Você não imagina como é horrível ser mulher e viver na rua. No útimo abrigo o cara tentou me agarrar, me puxou pelo cabelo. Eu gritei pelo assistente social, o cara era o assistente social. Na rua não dá pra dormir é muito perigoso. Eu quero me tratar, preciso de um psquiatra pra me dar remédio pra parar com essa tremedeira, pra entender minha cabeça.  Remédios para  sair do vício, parar de tremer. Tremer com os remédios que fazem parar de tremer. Um psquiatra Tárika, -  Eu tenho um amigo, posso falar com ele. Você quer? Ela diz que sim. Fica contente. Quarenta e dois anos, recomeçar. Combinamos de nos ver novamente. No próximo sábado, fotos no parque e o nome do meu amigo. Ela adora parques. - Nos encontramos aqui às onze horas, o parque é bem pertinho. Saímos de lá mais felizes. Falo com meu amigo psquiatra, ele quer ajudá-la. Espero ansiosa pelo nosso reencontro.
O dia amanhece lindo, as fotos não são tiradas. Tárika não apareceu. Volto na semana seguinte, ninguém nunca a viu, nem sabe quem ela é. Falo do seus olhos, cabelo, nome. O aparelho nos dentes. Quarenta e dois anos. Ninguém a conhecia, pergunto para o segurança que já era outro, com as mesmas vestes e o mesmo tipo de medo. Aqui é assim, a gente não guarda os nomes não, são tantas que passam. Umas nunca mais voltam, essa aí, acho que nunca vi. A assistente social  não tinha ido trabalhar. Era dia de auxílio. Espero o horário da Kombi, Tárika não apareceu. Torço para que tenha encontrado: um médico, trabalho, a irmã, o irmão, um lugar para dormir, comer,  oitenta reais, um jeito de parar de tremer. Um pouco de silêncio.

Av. Nove de Julho






QUADRA


Av. Nove de Julho

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

QUEM SÃO ELAS

Um cobertor, um quadriculado em cinza e azul e um jogo de damas sem diversão. Quinze mulheres, moradoras de rua, cochichando nessas páginas em silêncio. Trinta mulheres moradoras de rua. Suas histórias coladas na sola dos nossos sapatos, no retrovisor dos carros, nas trancas, nos desvios. Histórias sem disfarce. O cheiro de urina quente revira o estômago, faz lembrar meus próprios orgãos. Somos todos feitos de fígado e vesícula. Novecentas mulheres do lado de fora.
As falas aspiradas. O lixo, não. Tudo muito perto. Por instantes, uma coisa só. O lixo, o cheiro do lixo, o corpo dobrado, o grito, as histórias de amor, as pregas do rosto, o lixo, as valas nas calçadas, a garrafa de pinga, o resto de comida, a fumaça e os sonhos, as unhas pintadas. Elas, um alucinógeno descolorido nas ruas de São Paulo. Um DNA falho, do álcool, do crack, do país em que nasceram.
Bailarinos  do cotidiano, tentamos não nos enroscar. Suspendemos os pés, ficamos nas pontas. As ruas transbordam. As mulheres boiam. Molhamos  só as nossas pernas. Cartilagens entre os dedos nos deixam nadar. Não nos afogamos. Elas, esparramadas pelas calçadas. Nós, um andar acima.  As águas batem nas canelas das nossas casas. Dormimos de sapatos. Nossos  troncos permanecem secos. Cabeças e corações. Esticamos os braços para os céus, fazemos nossas preces. Elas, adormecem no frio. Raízes no mangue.
Acordo do lado de cá. Metros quadrados com teto. Estou no décimo andar. Direção oposta. Do lado de lá dos portões de ferro, a voz dela  inunda a rua. Afoga meus sentidos. A voz dela, que é só gritos. Entope os ouvidos, estoura. A voz dela  me joga no mais bestial  dos mundos. Afoga. A voz dela grita o meu grito. Rompe e desaparece.
O volume da sua dor diária queima o arroz da minha panela. O volume de sua dor diária apodrece meus alimentos orgânicos. O volume me encontra. Desço as escadas procurando pelo térreo.  Eu, num afogamento seco. O som do seu grito sai dos ouvidos, se aloja no pálato, se avoluma, dá o  mau gosto das próximas horas. Um berro que não para, um moto contínuo. Uma única respiração que entra nas  narinas  das madrugadas. Sufoca. Cria espuma na boca. Borbulha, molha. Vomito o meu bem estar, só por alguns instantes. As vezes nos encontramos na insônia. Noutras, me tira do sono. A sua falta de palavras encontra a tentativa das minhas. O seu som está na minha língua, mas não fala. Ela grunhe mais alto do que eu.
Um dia, um café, um cigarro, algumas coisas que aquecem. A  aproximação. Alguma coisa que aquece. Tudo lento. A vontade  que engordou com o tempo. Tudo muito lento. Gramas e medo. A sua casa uma mala com trancas, dentro dela tudo tem lugar certo. Seu nome Joana. Seu grito, Maria. Fora  da mala o cadeado no chão que não prendeu amores em pontes de rios poluídos. Roupas, cigarros, livros, uma boneca, um troféu e a falta. Duas rodas, uma touca cirúrgica na cabeça, em frente à livraria estaciona Joana. Ela me convidou para as calçadas, para os sofás de papelão, casas sem banho e de batom. Biblías e cachorros. Drogas e documentos.  Desejos.
Quem são essas, que a sociedade não inclui? Que precisam de documentos, serviços médicos e comida. Que matam. Nós não? Facas e estiletes. Quais são as nossas armas? O nosso crime diário?  O pó das narinas dos dentes descoloridos de branco? Quem são essas ex-babás, mães de família, pessoas amontoadas no chão? Nós nos sofás de couro, nas garrafas de Red Label. Nossas drogas são diferentes das delas? Nossos filhos são diferentes dos delas? Nossos globos oculares habitam de forma diferente suas órbitas? Nosso deus não é descamisado.
Histórias. As que são possíveis de serem contadas, para dentro de nossas casas. Para dormirem ao nosso lado. Reservadas nos seus mundos elas pedem passagem. Nomes e faces.  Joana, Silvia, Telma ,Tuva. Outras. Todas. Tárika, Aparecida. Tantas. Caixas de ossos e desejos. Entre eu e elas, o tamanho do corpo, a cutícula, a água quente  do banho. A fala. Entre elas e quem agora as lê, os ruídos. No papel a sombra. Nas janelas as persianas semi abertas disfarçam o desconhecido.

Mulheres, vozes em mim.

TRÊS DIAS DE SILÊNCIO

R. Haddock Lobo

Al. Tiête

R. Augusta