A pele do rosto maquiada e suja, os olhos pretos amendoados,
borrados de preto, amaciados. Uma pintura em crayon, esse era o rosto de
Aparecida, uma mulher de quarenta e dois anos com cara de menina, não moça.
Menina de uma certa idade. Tinha ao seu lado Danilo, o namorado, um moço com
cara de compromisso, cabelo com gel e camisa de mangas curtas, calça jeans e tênis,
um jovem pronto para não estar lá. Ela camiseta cor de rosa, cabelo dividido ao
meio, calça leg preta e um broche de flor com pétalas que não chegavam a
colorir: cinza, rosa e pretas, amarrotadas voltadas para baixo. O broche
alfinetado no peito que, se pudesse ve-lo dentro, vería também em
rosa, cinza e preto. Eu que era quase da mesma altura, outra idade, quase com
as mesmas roupas, outra cor de camiseta, não levava uma rosa no peito, calçava
o mesmo tipo de sapato de Danilo, estava chegando. As tiras brancas
da sandália de Aparecida eram bifurcações entre os dedos, caminhos. Haveria uma
outra possibilidade nos próprios pés? O chão se abriria em dois? De que lado
eram obrigados a ficar? Dali até a outra esquina, até a próxima praça? Quão
mais longo era o caminho? Para onde iriam com os pés calçados e bifurcados, com
as solas do tênis comidas pelo asfalto, com as tiras da sandália cedendo para o
tempo? Esperariam anoitecer? Esperariam que eu fosse embora, para borrar os
olhos, espalhar o gel, recolher as pétalas? Naquele dia ficamos.
Éramos três que buscavam respostas. Em pé, equilibrávamos nos
calcanhares os anseios. Aparecida falava e eu queria todas as letras, todas as
pausas, a sua falta de lógica. Ela omitia partes da verdade, da mulher que era,
mas aquele era o todo, e era desenhado por delicadezas nos gestos, na fala
rouca, nos riscos de esmalte das unhas dos pés, nas flores esmaecidas.
Conversamos em pé dentro da sua casa feita de dobraduras de
papelão, de sacolas de papel, mantas e mochilas. Sem paredes nem vizinhos.
Eles, criaturas pequenas, encolhidas, comprimindo-se naquele espaço
diminuto, respirando menos ar, tentando ser menos matéria. Atrás de suas nucas,
mas sem tocá-las, alguns poucos metros acima de suas cabeças, na desproporção
de uma pincelada, um terreno grande e baldio fazia cenário para o que não era
tela nem teatro. Poderiam estar do lado de lá, passeando por salas, quartos e
banheiros, filhos na escola, a comida no prato, mas não estavam. Uma cerca que
não era grade separava o real do que não era arte nem cenário: um vaso sanitário branco e
quebrado plantado na terra, as árvores que não nasceram em volta, uma
terra infértil. O que não se contempla. Tudo a nossa volta era cinza. O
muro branco, a pichação preta, o papelão, o cobertor furta cor. As mulheres que
vivem nas ruas são cinzas? As mulheres que vivem dentro dos casúlos
multicoloridos também são?
Enquanto Aparecida falava comigo, Danilo, o moço de vinte e
poucos anos, andava pela casa como um filho sonolento que acabou de
acordar. Papelão em papelão. Pronto para ir para escola, para o trabalho, para
esperar em pé o dia seguinte. Aparecida era a mãe de Danilo nas ruas durante o
dia. E à noite, quem dava às ordens? Quem dava às aulas? O que faziam do tempo
que tinham? A idade dele a metade da dela. Precisavam dos documentos, da
identidade, essa era a decisão. Desde quando? Quantas repetidas vezes? O tempo.
Nas mãos de Aparecida a providência divina, pediu que eu lesse -
A misteriosa providência que permite sofrerem os justos perseguição às mãos dos
ímpios, tem sido causa de grande perplexidade a muitos que são fracos na fé.
Alguns se dispõe mesmo a lançar de si a confiança em Deus.[…] Deus deu
suficientes evidências de seu amor, e não devemos duvidar de Sua bondade por não
podermos compreender a operação de Sua providência[…] Jesus sofreu por nós mais
do que qualquer de Seus seguidores poderá sofrer pela crueldade de homens ímpios.
- O Grande Conflito ,p 47. Carregava aquelas letras de cabeça
para baixo, talvez Danilo lesse para ela todas às noites antes de dormir? Onde
se escondiam todos os dias que não fosssem aquele?
Combinamos de eu estar lá no dia seguinte, tiraríamos as fotos
para os documentos e conversaríamos um pouco mais. Voltei às 16.00hs,
Eram quatro que me esperavam, estava lá um amigo de Danilo que fez amolecer
minhas pernas, acelerar o coração. Os olhos dele saltavam com raiva até
quase me esbarrar, os dentes trancados nos lábios, acenei com a cabeça e andei
em direção ao estacionamento próximo. Era eu um bloco de pernas e braços sem
pensamento. Aparecida e Danilo no mesmo compasso. Primeiro, as fotos De Danilo
que parecia estar lá por engano, tinha mais gel nos cabelos, mais sola nos
sapatos, mais sorriso no rosto. Aparecida e eu, sentamos na entrada de um
estacionamento próximo. Poucos carros e a autorização do dono. Ela inicia a
conversa de maneira fácil, parece que me esperava para contar da vida, sem parágrafos
nem vírgulas, precisava esvaziar-se de tanta história os anos comprimidos num
jato de acontecimentos. Começou pedindo para que eu comprasse bala ou água
para venderem no farol. - Revirar o lixo dá doença. O Danilo trabalha como
flanelinha, o dinheiro não da pra comer, só pro café. Não pego comida onde eles
dão pro pessoal da rua não. Hoje foi a terceira vez. Tô dormindo na ponte de
frente do abrigo. Já fui empregada e babá em casa de família. Meu marido
morreu, era caminhoneiro. A gente morava em Governador Valadares, morreu de
batida de caminhão. Tenho quatro filhos, tudo dele. Eu tava grávida de gemêos
quando ele morreu. Tenho uma de 23 e outro com mais de trinta. Os filhos
nasceram tudo aqui. Eu morei no Treme-Treme. Não tem o Treme-Treme que foi
derrrubado? Foi lá que eu conheci ele , aí nós começamo a namora, nós teve
relacão e ele me assumiu. Graças a Deus. O pai dele que não queria que eu
morasse com ele. Hoje em dia as família dele não gosta de mim. Já tenho oito
netos, meu filho o mais velho é o Ricardo tem 24, outra tem 23, outra tem
22, outra tem 21, é tudo diferença de um ano. A outra tem 18, e 17. A caçula
tem 13 anos. Conto sete. – Tá tudo estudando. Graças a Deus. Vejo todo
mundo, todos eles. Não se dou com o marido da Viviane. A minha caçula mora com
a Viviane, 13 anos, ela é mais alta do que eu, uma índia, bonitona, ela é uma índia
verdadeira, eu sou índia cabocla. Perdi meu apartamento, bati rolo no barraco,
o Paulo Maluf que deu. Só que a mulher falou que quando eu tira meus documentos
é pra eu ir lá conversar com ela, aqui no Vale do Anhangabaú, onde mexe os negócios
do papel, pra ver se pego meu apartamento de volta. Tive ordem de serviço fui
mandada embora. Trabalhava no Extra como faxineira. O Danilo vai morá comigo, não
usa drogas, só o cigarro. Os cara querem usar droga, dou conselho pra ele não
usar. Ele sempre vai atrás de mim. Se nós briga, ele vai ver onde eu tô. Meu
marido era bom, me carregava na cacunda, treze anos juntos. E o filho de
mais de trinta? Tudo do mesmo marido? A caçula tem treze. Eram gêmeos? Há
quantos anos o marido morreu? Ela, quarenta e dois e o mais velho
trinta? - O meu marido era gaúcho. O espirito dele é vivo no meu
coracão. Seu nome era Aires Soares, quando estou nervosa converso com ele. Deus
e ele, fecho os olhos e vejo ele. Foi batizado nas águas, vou na Igreja
Universal da Praça da Sé. Quero qualquer serviço: de gari, pra fazer faxina,
perdi o endereço. Lá no terminal da Mooca, eles ficaram de ver o serviço pra
mim e arrumar um quarto, eu tive que me aposenta porque tava com dedo quebrado
e o braço também. Aí eles não me deram a minha carteira, foi lá no Extra. Pra
busca tenho que pega o trem e o metrô. Eu vou busca, eu era encarregada,
preciso volta lá, depois que tirar os documentos eu volto lá. O Danilo tá
precisando de chinelo, meu filhos estão criados. Tem uns lá na Paraíba. Eu vou
falar com a Viviane, o Danilo pode trabalha pra limpa carro, vou levar ele
comigo pra tira os documentos, ele tá como indigente, sem cartão do SUS. Eu
mostro meu documento do remédio pra pega comida. Não uso droga nem ele. Ele
engravidou a mulher, que traiu ele, e a mãe dele foi pro lado dela, aí só
acreditou nele quando viu com olhos, mas o Danilo já tinha ido embora,
largou a família porque ninguém queria acredita nele. Ele morava lá no Ermelino
Matarazzo, bairro das Pimentas, ficou assim porque a mulher traiu, ele me
chamou para ver a filha dele. Não quero ver a mãe, nem a ex-mulher, se
for ver ela, não vai presta, também vou ter que ver meus ex. A mulher dele não
quer ver a cara dele porque ele tá comigo. Eu não conheço ela. Eu já tive vários
namorados, por causa da cachaça larguei deles. Antigamente não tinha rapa
levando o que é seu, agora os meninos de rua levam tudo, o caminhão leva tudo,
não quer saber se tem documento, leva tudo, roupa, documento, vai jogando no
caminhão, pegam tudo, por isso tem ladrão. Eu votei nela, falou que ia tirar nós
da rua. Esse prefeito aí o Haddad, ele é cruel, não é um prefeito fiel, eu
votei nele. Nossos amigos verdadeiros são o Veludo e o Roque. Cachorro toma
conta e faz companhia. Eles corria atrás da policia e mordia. Se você puder
trazer roupa, o Danilo tem sinusite.
Levo as fotos, as roupas, o chinelo do Danilo, duas refeições.
No chão, o papelão e garrafas de bebidas. Disseram que a bebida era dela, a
cachaça. Onde estarão? A rua não muda de lugar. O papelão molhado fica, a casa
se move. O vaso sanitário continua lá, a tela quadriculada protegendo o terreno
baldio também. Quem sabe suas orações, o dia do juízo final, a Providência
Divina, a realização de um milagre. Ou, como pedaços do papelão,
dobraram-se, desmancharam-se em água, álcool. Voaram com o vento, como
fotografias 3x4 descoladas de um arquivo de firma, de obtuário. Quem sabe Danilo de RG 88.765.456-X e Aparecida, sua noiva, sua menina. Na Penha, no
Barroso, na Sé...
* O Relato de Aparecida é de meados de
2013. Minha ideologia política não está expressa neste texto.