quinta-feira, 29 de outubro de 2015
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
JOANA
DESTITUIÇÃO :
Primeiro
seus gritos provocaram espanto, por que você gritava tanto, especialmente nas
primeiras horas da madrugada? A sua voz era parte de um mundo de destroços. Um
mundo que ressoava em mim desde a infância: de crianças pedintes nos faróis em
dias de chuva, de mendigos, de ciganos lendo palmas da mão em troca de qualquer
moeda, de aleijados vendendo balas para comprar uma cadeira de rodas, dos que
ficavam do lado de fora da Igreja da Sé, deitados nas calçadas no Largo do
Socorro, na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, ruas que ficaram na minha memória.
Você tornou-se o receptáculo dessa indignação.
Os seus
urros chegaram aos ouvidos das casas sobrepostas, coladas umas às outras.
Camadas de famílias indo em direção ao céu. Vivem como um empilhado de
processos arquivados sem solução. Os esquizofrênicos dos andares molham o dedo
na língua para virar as páginas, mas os papéis de tão antigos, adquiriram forma
e não se desgrudam mais, são partes no corpo. Blocos de poeira, posses e rancores.
Você, Toinha, dói nos espaços entre os ossos, nas cartilagens que secaram, em
cada vão dos tacos, desnivelando o chão. Cada grito seu é uma palavra proferida
por eles, maldita e sem articulação. Fere, e a família se decompõe num lento
caminho de abismos. Despencam pais, filhos e irmãos. Por isso precisam dos seus
gritos Toinha, da sua loucura Maria, enquanto a deles goteja em vasos com
flores brancas e frescas, no mofo dos porta-retratos, nos castiçais das velas
que nunca foram acesas. Você é a voz do silêncio nos almoços de domingo, nas
discussões de olhares que flamejam sem promessas de cessar fogo. A melhor
palavra derrotará o inimigo: pai, filhos, irmãos, não há
perdão nem arrependimento. Os seus gritos são lançados, sobem
e trincam os poucos afetos. Os cofres-porcos quebram e deles caem as
moedas, as galinhas ciscam buscando a sua parte. A natureza do homem é feita de
migalhas e estilhaços. Querem te tirar das ruas porque não conseguem livrar-se
na água quente do banho do que já virou pele.
Eles são os
que dividem o mundo entre os seres de raça e os vira-latas. Esses, Antonia, que
cochicham e pedem sua remoção para limpar o bairro, para secar a franja da moça
que passava com o filho e um dia você cuspiu no cabelo dela, porque eles
corriam com medo de você. Esses que pedem que a leve, tomam comprimidos para
dormir, assim as vozes do mundo cessam e quem sabe na manhã do dia seguinte, o
sonho possa ser lembrado por inteiro.
O moço que
manobra o carro passa e te chama de Maria, você foge andando rápido, cabeça
baixa e gritando, sua estrutura racha. Ter o nome trocado poderia ser uma
possibilidade de fuga de um mundo que foi hostil e te partiu em pedaços, quando
você perdeu seu filho, uma das versões da sua história. Então poderia ser
melhor não ter um nome, nenhum tipo de identidade. Maria é mãe de Jesus, quando
dizem este nome, talvez a dor num movimento contrário, rasgando a pele,
clame pedindo pelas bençãos que lhe foram roubadas.
Soube que
você dormiu na casa de uma mulher e agrediu-a na cozinha. Uma pancada pelas
costas e ela foi ao chão. A mulher era dona de um porco cor de rosa e andava
com o bicho na coleira em ruas da cidade. Alguma forma de encontro. Soube que
você perdeu um filho adolescente. Soube que separou-se do marido. Soube que era
de família classe média. Soube que seu nome é Joana. Que viveu uma separação.
Um enlouquecimento. Que alguns pensam que é Toinha. Que tem cinquenta e tantos
anos. Soube.
Talvez
queira lavar as roupas? Escovar os dentes? Um abraço apertado? Tomar uma sopa?
Deitar no sofá? Ver o mar?
Os
manobristas dos restaurantes, os meninos que gritam dos apartamentos gostam
quando você urra, um circo de horrores se forma. Gente. A fila dos clientes que
esperam mesas para jantar ri. O macaco pula na cela aberta. Outros gargalham
quando você, nua, usa a rua como parte de qualquer casa. O macaco defeca na
cela. As mulheres fecham os olhos e você se banha. Um corpo nu, lavando-se na
água parada. Os restaurantes tremem em suas construções, mas não saem do lugar.
Um corpo foi
encontrado no centro da cidade, era uma mulher de quase sessenta anos, atearam
fogo, outro foi encontrado violentado perto do CEAGESP, era uma mulher, trinta
e poucos anos, outro perto da estação da Luz, era um menina, dezoito
anos. Ontem eu te vi acendendo um cigarro com uma moça que estava sentada na
cafeteria. Senti alívio. A moça continuou na mesa batendo papo, você sentou-se
no chão. Te levei um café e você me agradeceu em silêncio. Sigo caminhando.
INICIADOS
Joana sai do chão. Senta na cadeira, pede um café, um panini, um chocolate e uma água. Fuma seu cigarro tranquilamente, dá uma risada, usa das palavras que existem soltas por aí. Olha os que andam, os que sentam, comenta. Paga a conta, anda até o carro, buzina, reclama da vida, chora. Tem uma família, um emprego um casal de filhos. Joana, Maria, Antônia grita dentro de sua casa gritos concêntricos. Estafa-se. Diferencia-se dos animais, não late. Reclama mais uma vez. Sempre atenta às bifurcações.
Senta-se em uma cadeira confortável, dobra os joelhos, apoia os cotovelos, a cabeça nas mãos. Anda até o chuveiro. Deixa a água correr no seu corpo, ouve a música que toca, passa o sabonete. Um creme amacia a pele. Lê um livro. Dá um gole na água. Deita-se na cama.
Penteia os cabelos que não são brancos. Transita onde é só afastamento. O mundo tornou-se conhecido.Todos os esconderijos habitam o próprio corpo. O coração bate, mas não deixa testemunho, é azul e escorregadio. Não há margens, os outros encarregam-se de juntar os fatos. As ondas batem frescas na memória, espumam na boca e salgam os olhos. Uma mulher sentada na praia com o filhinho no colo, uma pá e um baldinho. Gotas de areia sobem em castelos. As ondas batem e as coisas se desmancham. Os dedos quando ficam muito tempo na água enrugam. As pessoas quando ficam muito tempo na vida também.
terça-feira, 13 de outubro de 2015
TODOS ESTÃO CONVIDADOS
DESCRIÇÃO:
O
Projeto AS DONAS DA RUA, na última sexta feira, nove de outubro de 2015,
dividiu a calçada da Avenida Paulista com vendedores, artistas e moradores de
rua. Montei uma “casa”, em frente
ao Parque Trianon, similar às que tenho visto nas minhas andanças pela cidade, um tipo de moradia de quem vive na rua, barraca feita de plástico preto,
fixada em grades de parques, prédios, lojas, etc… Amarrei dois metros do plástico
em duas grades do Parque Trianon, dando um nó em cada uma de suas pontas. Duas
latas de tinta foram colocadas na parte da frente, esticando o plástico. A barraca estava montada, duas eram as aberturas laterais. Uma delas
servia como porta de entrada para os convidados. O chão da casa foi forrado com
caixas grandes de papelão e um cobertor “reizinho”, usado por moradores de rua.
Dentro da casa tocava uma trilha com as gravações coletadas dos depoimentos das moradoras ao longo de todo projeto. Deixei-a tocar repetidamente. Coloquei um caderno e algumas canetas em cima do
cobertor para quem quisesse escrever, da mesma forma que faço quando
converso com as moradoras de rua, quando ofereço caderno, lápis de cor e canetas para livre expressão.
Do
lado de fora, dois jovens convidavam as pessoas a entrarem na casa e ouvirem as histórias gravadas. Ficamos
ali durante três horas.
Eu
permaneci a maior parte do tempo deitada em um dos cantos dentro da casa: um cobertor sobre o corpo, uma
touca de lã na cabeça e roupas velhas. Uma mulher sem fala, suja e de poucos
movimentos.
REPRESENTAÇÃO DO MUNDO:
Eles me observam, uns se assustam e não se aproximam, outros chegam bem perto. Se pisco os olhos, recuam. Para alguns, dois minutos às vezes basta, um minuto. Para outros dez minutos parece pouco. A repetição da história traz uma espécie de entendimento do que já é sabido. O que era distante, torna-se presente. Dentro da barraca somos todos iguais: as mulheres que falam, quem as ouve e eu. Uma massa amalgamada que respira o mesmo tipo de ar. O espaço é quente e estamos vivos. A percepção desse momento faz da caneta um instrumento de fuga e identificação. Corre a tinta pelo papel. O incomodo vira manifesto. O sentimento fala. Uma união de forças que não sabe para onde ir. Mas o que será isso? O racíocinio insiste em perguntas que não provocarão ação. Que responsabilizam o outro. Mas que outro, se o outro sou eu? Isso não levará a nada. Somos tão impotentes. A cabeça se conforta no sim. Quem são os homens que ajudarão essas mulheres, pensam as mulheres de alguns homens? Como estou vendo essa invisibilidade que tem voz e forma de gente? Eu não quero olhar para isso. Eu não vou olhar para isso. É um direito que me assiste. Os que estão fora e não querem entrar correm dali em direção a outras esquinas, tropeçam no que não é cenário e correm mais. Correm. Os relógios tem ponteiros grandes e é preciso fugir antes que a volta se complete. Vinte e quatro vezes por dia! - Corra!- Vamos comigo? - Te encontro mais tarde. Terei mais tempo depois, agora esse barulho me atordoa e eu não tenho o que fazer com isso. Com essa porção de issos que sou obrigada a me desviar. Saio pulando corpos pelas calçadas, isso atravanca meu caminho. Perco tempo. Tenho tanta pressa, preciso de tempo. Quero sair daqui. Socorro! Nos tirem do mundo, mas nos deixem viver. - Olha aquela mulher ali! - É um guri, rapaz! Tudo mais tranquilo, àquela mulher é um guri e faz parte de outro amontoado de chão. Tanta coisa pra se pensar, e o meu tempo tomado numa barraca que não tem vista pro mar. Meu tempo! - Vamos, corra! - Olhe, aquela barraca minha senhora. Gostaria de entrar? - Menino eu não, não vou entrar, não tenho tempo, estou cansada de ver isso. Tem em todo lugar, agora virou moda gente espalhada na rua. Qual a novidade? A cidade há tempos é uma sujeirada só. Fede.
A
caneta é alcançada de longe, uma extensão do braço, há nojo por ali, mas os
papelões são limpos, o cobertor é novo, a mulher ali deitada é apenas uma
mulher deitada. Tudo é ficção. O nojo nos protege do mundo. A moça, de vinte e poucos anos, senta perto
da saída, sempre há uma possibilidade de fuga. Ela fica longe de mim, longe do
corpo. Inspira profundo no seu expirar sem pausa o nojo que dessa vez a aproxima do mundo,
esbofetea e sacode todas as desculpas. Não se procura o humano num jogo de esconde-esconde,
atrás da porta, agachado em um canto com dedo na boca pedindo silêncio. Ele
está tão perto, submerso, enganchado em qualquer parte da sua biografia. Pode
dar as caras a qualquer hora ou não. “ A
invisibilidade social causa uma dor imensa tanto para quem sofre dessa ausência
de olhar, quanto para quem é ator/agente que despreza essa situação(…)
Eles,
os jovens, continuam entrando e não são poucos. São curiosos e tem medo, mas
acreditam, alimentam-se da vida. Os mais velhos tem preguiça e olhos acomodados. Sentem-se
derrotados pelo mundo que criaram. A desgraça há tempos trançou-se nos dias. Não parece haver solução. Tudo é um
arrastar pelo tempo. Tudo é repetição. Cultiva-se a estranha desesperança do
existir.
Permanecemos, o espaço é pequeno e o plástico preto esquenta, o que é fora aos poucos
perde lugar. O som da Avenida Paulista fica baixo, há silêncio contemplando as árvores do Trianon que são belas. Um bolsão de
isolamento torna a vida dentro de uma barraca de plástico possível de ser vivida.
Mais uma bolha que respira na cidade de São Paulo. As horas passam, os
convidados entram e saem, deixam escritos no papel. Ações. Observo partes de cada corpo, não nos encaramos. Como
fotografias, as imagens armazenam-se na memória. As imagens que são sons e gestos.
Posso esquecer onde estou. O calor não é mais temperatura no corpo. O chão e o
tempo. Como grama sobrevivente no cimento são as moradoras de rua. Criam flor. Suportam a existência de não existir. Reclusas em seus casulos deixam que o mundo fora não seja nada. Dormem o tempo de espera, encolhidas no útero quente e escuro até a última contração.
AFETOS:
Primeira calçada:
1 Senhor
2 Mulheres de trinta e poucos anos
15 Jovens
PRESENCIANDO A AUSÊNCIA
Avenida Paulista. Uma tarde agradável na rua. Alguns à passeio, todos a trabalho. A calçada tornava-se uma mera passagem. De um lado ao outro, mas ninguém ali. Convidávamos os transeuntes a adentrar na barraca, escutar um pouco do que fora
contado pelas mulheres sem teto e pedimos a eles que escrevessem um pouco das impressões que tiveram na experiência. Do lado de fora, do desinteresse ao
interesse, da falta de curiosidade e mal educação dos mais velhos e apressados
ao olhar e pensamento mais intrigantes dos jovens, uma experiência única e
reflexiva. Um pouco dos arquétipos que percebi:
- Engravatados: Com pressa, mal
percebiam nossa existência. Indo ao trabalho, sem tempo. Voltando, cansados.
Imersos numa bolha inatingível. O mais próximo que consegui de um deles foi:
“tô com pressa. Na volta, quem sabe?”. Não voltaram. Em horário de almoço, de
jantar ou de trabalho, quais sejam, faziam parte de uma paisagem agitada, mas
sem vida. Um movimento reiterado e incessante como um maquinário prestes a
fundir. Qualquer um que pudesse parar, de certa forma, romperia com o movimento
e empacaria a velocidade da vida. Não dar atenção é parte do cotidiano,
imutável em sua volatilidade.
- As duplas: Um puxando o outro para
dentro. O outro puxando um para fora. Ficavam no meio do caminho. Em pé, com
medo de entrarem na barraca, as duplas oscilavam entre curiosidade e desânimo.
Aos poucos se entregavam; entravam. Perdiam um pouco do seu tempo e ganhavam um
tanto de sentimentos inexplicáveis. Da quase passagem desapercebidas à saídas,
conversas e questionamentos interessantes. A vontade de saber o que sucederia
do projeto. “Mas é só isso?”; “O
que vão fazer depois?”; Vocês ajudam as moradoras?” – Uma resposta rápida – o
reconhecimento faz parte essencial à inclusão. Das conversas com as moradoras,
“Só de vocês pararem aqui e conversarem, já nos sentimos parte da sociedade. Só
isso já ajuda”. Aos que nos perguntavam, buscavamos respostar rápidas e prontas
para assuntos que, de fato, merecem a maior atenção possível. No mínimo,
reflexões.
- Jovens: Em sua maioria curiosos, buscavam ao máximo se entregar ao projeto. Dentro da barraca, os que mais ficavam. Sentavam por mais de cinco minutos, escutavam cautelosamente e escreviam os depoimentos mais interessantes. Refletiam o desejo de mudança, e às vezes, realizavam uma impotência aparente: “triste realidade tão distante da nossa”. Realidade essa que é tão próxima. Barracas e barracas que perpassamos ao longo do dia e de nada fazemos. Das vivências em projetos sociais e esperança. Uma geração ávida por justiça. Os filhos da geração perdida das ditadura querem igualdade? Mudanças são feitas no dia a dia. Inconformados? Me parece que sim.
- Jovens: Em sua maioria curiosos, buscavam ao máximo se entregar ao projeto. Dentro da barraca, os que mais ficavam. Sentavam por mais de cinco minutos, escutavam cautelosamente e escreviam os depoimentos mais interessantes. Refletiam o desejo de mudança, e às vezes, realizavam uma impotência aparente: “triste realidade tão distante da nossa”. Realidade essa que é tão próxima. Barracas e barracas que perpassamos ao longo do dia e de nada fazemos. Das vivências em projetos sociais e esperança. Uma geração ávida por justiça. Os filhos da geração perdida das ditadura querem igualdade? Mudanças são feitas no dia a dia. Inconformados? Me parece que sim.
IMPRESSÕES
O calor é sufocante mas é muito frio. Olhos nos olhos, sem dar sermão.
Solidão: Veneno. |
O que faz o seu caminho? E quando você não sabe para onde ir? Obrigada por vocês estarem se importando com o que todos julgam pouco. |
Todos somos frutos de uma só semente. O riso pode ser a liberdade do amanhã. A vida não é justa. Nunca perca a fé em Deus! "As vezes, as pessoas só precisam de uma nova oportunidade" |
Difícil falar dessa realidade que está tão tão distante da minha. A única coisa que posso dizer é que com tão pouco tempo passado nesse ambiente, já se pode ter uma idéia mínima da dureza dessa vida.
|
terça-feira, 6 de outubro de 2015
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
AMORES AGUDOS - UM CONTO
Aprendi
a viver de amores. Troco o rosto,
o papelão, o lado. Os nomes eu não
me lembro mais. O meu? Nunca gostei de ser a mesma pessoa. Prefiro os que
começam com S. Já tive mãe e
nenhum pai. Várias casas e pouca roupa no corpo. Olho para o céu e a cabeça
fica amarrada pela boca, presa na
primeira estaca. Escorregam por mim palavras que não consigo dizer. A mãe sempre
colocou padrastos em casa. Tive que saber andar antes dos primeiros passos. Na
rua a vida começa no dia anterior, vivemos de madrugadas, é sempre frio e os
cobertores não aumentam os graus. Preciso de um corpo que se grude ao meu para
não cambalear sozinha por aí.
Ele
foi vender bala no farol e já volta. Ele é flanelinha, ganha uns trocados. Cata
latinha. Temos um plano. Vamos alugar nosso quartinho, já tenho um colchão de
casal. Meu amor por ele não é
feito de palavra, eu não acredito nelas, vem de uma coisa de dentro, um ar que
fica quente e aumenta de tamanho, parece que vou sair voando. É uma febre que não
sara. Queima, e eu nunca quero que
passe. Ele é como um ônibus que me leva pra casa, que eu nem sabia que
tinha. Casa, com flor no vaso e papel de parede. As paredes são pintadas de azul e o chão é de porcelanato. Eu ando
feliz de um cômodo para o outro. É um passeio dentro de mim, eu sou a dona de
tudo. Ele me deu de presente o que
faltava em mim. Às vezes ele bebe na esquina, paquera uma outra, mas quem ele carrega na cacunda e faz cafuné sou eu. Eu
preciso de um homem pra amar. A noite é muito longa quando eu tô sozinha. Um
dia ele me bateu, mas foi sem querer, ele disse, tinha tomado cachaça. No dia
seguinte chorou, falou pra eu não largar dele. Eu pensei em ir embora, mas não
tive coragem. Se ele fizer de novo, só mais uma vez, aí não respondo por mim. Posso
acabar com ele, mato ele envenenado e tomo outro rumo na vida. O amor é assim,
faz a gente morrer várias vezes, ou matar. Não tenho medo. Tem uns que deixam a
gente mais feliz, nunca se sabe por quanto tempo. Quando fica ruim e me dá na
telha eu fujo. Posso passar a vida toda fugindo. Muita gente faz isso, vai
inventando um motivo pra vida fazer sentido. Não sou burra, todas as coisas têm
o mesmo nome nas línguas diferentes do mundo. Posso não ter estudado nem ter ido muito longe, mas conheço
de tudo. Love é amor em inglês.
Vou
tirar meus documentos, criar uma identidade. Ser vendedora de loja, trabalhar
em restaurante, fazer faxina, ser encarregada numa fábrica, ter um nome e casar com papel passado. Vou ser alguém fora da rua, das oito da manhã
às seis da tarde, com carteira assinada e INSS, daí, no resto do tempo, assumo
o meu nada com nome e RG registrado. Vou ser livre para ser infeliz sem hora
marcada. As pessoas inventam essas datas pra disfarçar o tempo. Na rua não tem
disso, fica de dia do mesmo jeito que fica de noite, o mês pode ter qualquer
nome. Uma única coisa que eu sei, é que hoje eu tô aqui. Amanhã, ninguém sabe. Hoje
eu tenho esse amor, se não fosse por ele, eu já tinha morrido ou me matado. Já
fui que nem poça de água parada, verde bem escuro, não dava pra ver o fundo. Tudo sem movimento, cada
dia era um dia a mais para ser esquecido. O amor sacode a água, às vezes a gente
se afoga, rala a barriga na areia, sai por aí sem rumo, mas passa um pouco de
tempo, aparece um outro cara, pra mim é sempre assim, vou levando. A vida
continua, aparece outro que dá mais sentido pra morte. Esse de agora é tudo que eu tenho. Ainda não arrumei
emprego, ele que me protege.
Quando eu for pro outro lado, porque eu acredito que tem vida depois da morte,
ele vai ficar com saudades.
Tem
homem que gosta da mulher que manda, esses parecem mulherzinha. Fracos, a
mulher é que é forte. Eu sou forte,
mas não gosto de mandar em homem. Já me virei muito sozinha, me viro. Gosto de fumar um cigarro, beber minha
cerveja. Também gosto de batom, bolsa e maquiagem, sou igual a qualquer mulher,
se eu não morasse na rua, tinha um
monte de homem atrás de mim, eu ia fazer eles de bobos. Homem sem mulher não é
nada. Mas eu não desprezo o meu. Também gosto de mulher, tive só duas. Mulher
entende mais de mulher.
Tô
carregando um bebê na minha
barriga, eu tentei tirar, quase morri
e o bebe não saiu. A barriga continua crescendo. Tenho que ir no médico, mas
por aqui é difícil e eles tem nojo da gente, de colocá a mão. Meu namorado falou que vai me acompanhar.
Homem tem que acompanhar a mulher. Não fiz o filho sozinha, depois tem que me
ajudar a criar, não quero largá meu filho como minha mãe me largou. Todo dia
ele busca comida pra mim, acha que eu tô muito magra, já tô de sete meses, não uso
crack. Já usei, mas agora eu tô limpa. Sou moradora de rua, mas não como
qualquer coisa, outro dia tava
cheio de bichinho branco na comida que deram pra ele. Eu joguei tudo no lixo. Aceito esmola, mas
não vou comer coisa estragada. A comida tem que ser boa, um prato de arroz e
feijão quando tá fresco me enche de felicidade.
É
isso aí o amor, um prato de arroz e feijão mais umas mentiras que viram verdade. O que eu mais gosto desse
meu namorado, do Jeferson, é do jeito que ele me põe no colo, ele só tem um
braço, mas o abraço dele foi o mais forte que eu já recebi. Perdeu o braço
quando era motorista, tinha bebido e teve que dirigir, o patrão sabia que ele
não podia. Era sábado ele tava de folga, o velho insistiu. Depois disso, perdeu
o emprego, foi preso. A moça do outro carro morreu. Ele ficou traumatizado. O
patrão fingiu que nem sabia, a vida do Jeferson acabou, quando saiu da cadeia virou morador de rua. Quem sabe
agora que a gente tá junto e vai ter neném, nós podemos
mudar tudo. Um sonho é morar na praia, ele pode vender coco, ou pastel. Ele já
tem o RG, eu vou tirar o meu, precisamo do dinheiro da passagem, do documento e
de coragem. Se não der certo a gente volta. Já tamo acostumado aqui, com o
cheiro da Avenida Paulista, as buzinas, esse monte de gente que passa. Juntando
o que dão num dia não pra muita
coisa. Depende como ele tá, se começa a falar do acidente, vai pro bar compra
cachaça, torra tudo que a gente tem. Dessa vez acho que vai dar certo, tenho um
dinheiro escondido, já dá pra uma passagem. Qualquer coisa eu vou primeiro.
AMORES ESTENDIDOS
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