Papos
de várias faces, de poucas palavras. O som vibrando no texto. O desejo do
reencontro. Tuva, Elizabeth, Graça e Silvia. Processo de ebulição desfeito pela
tampa. Volto para casa ou dou voltas pelo mundo vedando buracos com quatro grãos
de areia.
Descendo a
rua Antônia de Queirós, Tuva manobrava seu carrinho de feira. Não levava
compras, não levava nada. De óculos escuros no topo da cabeça, pulseiras nos
braços cheios de pintas, fios desbotados de echarpe enrolados no pescoço, batom
desenhando uma segunda boca, unhas com resto do esmalte e imagens.
Charmosa, cheirava ao que não era novo. O blush laranja mal espalhado riscava
pelas bochechas a vida em riachos profundos e secos. Os olhos de Tuva eram
azuis mergulhados em água que brilhava como um mapa mundi, girando e mostrando
o mundo inteiro numa fração de minuto. Uma andarilha colorida entre vitrines e
bares no baixo Augusta. Ia num passo misturado, cheio de história, mas com
pouca convicção. Já foi governanta, babá e mais uma porção de coisas que não se
lembrava bem. Que foi Miss Silvio Santos, causou-nos espanto e alegria! Balançou
as pulseiras, estremeceu o olhar. Lágrimas azuis ficaram penduradas nos cílios.
Não sei se nos meus ou nos dela. Trocou de assunto como troca de esquina e
contou que teve um gato quando morava em Santos. Um gato que não miava, mas que
pagava as contas do restaurante: - Quando se tem um gato que paga as contas, não
dá certo. Ele acha que é seu dono. Ficamos mais uma vez com o susto nas mãos.
As lembranças passavam rápido e ela também tinha pressa. Era hora de descer as
escadarias para voltar para casa. Não fizemos fotos, ela queria "se
ajeitar", me disse, "se arrumar". - Quem sabe amanhã, perto da
rampa do MASP, na parte da manhã sempre fico lá, faz bastante tempo que
moro lá. Você pode? - Posso sim, Tuva.
Gostaria
de estender-me, passear com ela empurrando carrinhos de feira vazios. Olhar as
vitrines do baixo Augusta, sentar e tomar um café. Passei por lá tantas
vezes. Um dia um amigo tirou algumas fotos dela e me avisou onde ela estava.
Corri pra lá, andei pelas imediações. Talvez, outra cor de cabelo, óculos,
pulseiras… Tuva, não deixou rastros.
Elizabeth é
esguia. É da paz. É de boina verde e saia longa. É sem dente na boca. Tem um
restinho de rosa nos lábios. Quer ser rica, me pediu uma mala cheia de dinheiro
pra sair pelo mundo viajando ou pra comprar uma casa, não sabe bem. Roupas elas
também querem. Elizabeth tem fama de roubar dos que andam pela rua, dos donos
das lojas que deixam coisas pra fora: vasinhos de flor, cartazes... Rouba, mas
não foge. É de poucas palavras e ações rápidas. Tirou o gravador da minha mão,
fomos ágeis, as duas. - Não posso te dar, trabalho com ele. Queria também meu
celular. Peguei de volta. Gostou da idéia de contar suas histórias, mas não
aquele dia. Posou para as fotos, fez um desenho no caderno. Nos dedos um sinal
de paz e amor. - A mala de dinheiro fica difícil de trazer. Te trago as roupas,
pode ser? Um sorriso e um aperto de mãos. Outro dia nos vemos. -Tô sempre por
aqui, ela me fala. O moço da barraquinha de filmes pirata me avisa: - Cuidado
com ela moça, é ladrona. Todo mundo sabe.
Ainda não
era noite, mas o céu já estava escuro. Também não era inverno, mas já fazia
frio. Ela estava de costas para mim, parada na esquina revirando sacos de lixo.
Caminhar até ela foi longo. Um mundo de pensamentos passou por mim. Graça, uma
mulher calma, que procura por papelão nos lixos da cidade. - Dá pra fazer dez
reais por dia, me diz com certo contentamento. Morava ali perto do Jabaquara.
Seus banhos tomados em abrigos, algumas vezes, só algumas. Dormir também só de
vez em quando. - Ir muito no abrigo só atrapalha pra arrumar emprego. Tem
carteira assinada e alguns filhos espalhados por aí, mas não fala deles. Já foi
auxiliar de departamento, copeira e empregada doméstica. Tiramos apenas uma
foto. Graça é muito bonita. Estava anoitecendo, combinamos de nos ver outro
dia, naquele mesmo horário ou mais cedo no Ibirapuera, portão 5.
Passei por
lá várias segundas, ninguém soube falar dela, arrisquei outros dias, ninguém
nunca a viu. O lixo transbordando de papelão. Quantos reais poderia ter feito?
- Graça? um grito que não vai ser ouvido. No portão 5, também não esteve. O
parque tem dez portões e a semana sete dias.
Silvia é
guardadora de carros. Sua casa é de rodas e lona azul. Tem garrafões de
plástico e papelão pendurados por todos os lados, o cachorro Duque, um varal
feito na árvore, cadeiras pra sentar na calçada e a madrinha. O marido está
dormindo. Ela lida com a vida de um jeito prático, logo puxa uma cadeira pra eu
sentar e chama o Duque pra nos fazer companhia. Usa anéis, pulseiras, camiseta
florida de alcinha e barriga de fora, Duque de coleira de pérolas. Seu marido
acorda dentro da barraca e grita, eles discutem. Eu levanto. Ele sai, pergunta
se sou escritora, se quero conversar com ele. Explico que esse projeto é só com
mulheres, quem sabe uma próxima vez... Tudo tem um ritmo acelerado. Para cada
frase um movimento. Ela pendura suas calcinhas na árvore, enquanto conversamos
mais um pouco. Silvia passa o batom nos lábios, vamos tirar as fotos. -
Tira umas fotos aí do meu barraco, ela diz. O marido já tinha entrado. Uma senhora
aparece, não sei bem de onde : - Benção madrinha! Silvia desenha uma casa
no caderno, e deixa um beijo com batom. A madrinha fala que ela vai conseguir.
Uma foto da madrinha e ela desaparece. Do outro lado da rua, três caras me
analisando. Silvia olha para o meu celular e depois pra mim. Guardo o celular
no bolso. - Já deixei você tirar foto do meu barraco. Volta outro dia. Agora
vai! Dou meu livro pra ela. Agradeço e nos desejamos boa sorte. Acelero o
passo, ela encara os três que atravessam a rua. Dessa vez eu estava de carro.
Tudo muito rápido. Sabemos que não é para eu voltar.
Quatro damas,
quatro flores no asfalto. Aos que vivem, a certeza do agora.
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