terça-feira, 22 de setembro de 2015

PARÁGRAFOS DE ESPERA



Papos de várias faces, de poucas palavras. O som vibrando no texto. O desejo do reencontro. Tuva, Elizabeth, Graça e Silvia. Processo de ebulição desfeito pela tampa. Volto para casa ou dou voltas pelo mundo vedando buracos com quatro grãos de areia.



    Descendo a rua Antônia de Queirós, Tuva manobrava seu carrinho de feira. Não levava compras, não levava nada. De óculos escuros no topo da cabeça, pulseiras nos braços cheios de pintas, fios desbotados de echarpe enrolados no pescoço, batom desenhando uma segunda boca, unhas com resto do esmalte e  imagens. Charmosa, cheirava ao que não era novo. O blush laranja mal espalhado riscava pelas bochechas a vida em riachos profundos e secos. Os olhos de Tuva eram azuis mergulhados em água que brilhava como um mapa mundi, girando e mostrando o mundo inteiro numa fração de minuto. Uma andarilha colorida entre vitrines e bares no baixo Augusta. Ia num passo misturado, cheio de história, mas com pouca convicção. Já foi governanta, babá e mais uma porção de coisas que não se lembrava bem. Que foi Miss Silvio Santos, causou-nos espanto e alegria! Balançou as pulseiras, estremeceu o olhar. Lágrimas azuis ficaram penduradas nos cílios. Não sei se nos meus ou nos dela. Trocou de assunto como troca de esquina e contou que teve um gato quando morava em Santos. Um gato que não miava, mas que pagava as contas do restaurante: - Quando se tem um gato que paga as contas, não dá certo. Ele acha que é seu dono. Ficamos mais uma vez com o susto nas mãos. As lembranças passavam rápido e ela também tinha pressa. Era hora de descer  as escadarias para voltar para casa. Não fizemos fotos, ela queria "se ajeitar", me disse, "se arrumar". - Quem sabe amanhã, perto da rampa do MASP, na parte da manhã sempre fico lá, faz bastante tempo que moro lá. Você pode? - Posso sim, Tuva.  
    Gostaria de estender-me, passear com ela empurrando carrinhos de feira vazios. Olhar as vitrines do baixo Augusta, sentar e tomar um café.  Passei por lá tantas vezes. Um dia um amigo tirou algumas fotos dela e me avisou onde ela estava. Corri pra lá, andei pelas imediações. Talvez, outra cor de cabelo, óculos, pulseiras… Tuva, não deixou rastros.



    Elizabeth é esguia. É da paz. É de boina verde e saia longa. É sem dente na boca. Tem um restinho de rosa nos lábios. Quer ser rica, me pediu uma mala cheia de dinheiro pra sair pelo mundo viajando ou pra comprar uma casa, não sabe bem. Roupas elas também querem. Elizabeth tem fama de roubar dos que andam pela rua, dos donos das lojas que deixam coisas pra fora: vasinhos de flor, cartazes... Rouba, mas não foge. É de poucas palavras e ações rápidas. Tirou o gravador da minha mão, fomos ágeis, as duas. - Não posso te dar, trabalho com ele. Queria também meu celular. Peguei de volta. Gostou da idéia de contar suas histórias, mas não aquele dia. Posou para as fotos, fez um desenho no caderno. Nos dedos um sinal de paz e amor. - A mala de dinheiro fica difícil de trazer. Te trago as roupas, pode ser? Um sorriso e um aperto de mãos. Outro dia nos vemos. -Tô sempre por aqui, ela me fala. O moço da barraquinha de filmes pirata me avisa: - Cuidado com ela moça, é ladrona. Todo mundo sabe.



    Ainda não era noite, mas o céu já estava escuro. Também não era inverno, mas já fazia frio. Ela estava de costas para mim, parada na esquina revirando sacos de lixo. Caminhar até ela foi longo. Um mundo de pensamentos passou por mim. Graça, uma mulher calma, que procura por papelão nos lixos da cidade. - Dá pra fazer dez reais por dia, me diz com certo contentamento. Morava ali perto do Jabaquara. Seus banhos tomados em abrigos, algumas vezes, só algumas. Dormir também só de vez em quando. - Ir muito no abrigo só atrapalha pra arrumar emprego. Tem carteira assinada e alguns filhos espalhados por aí, mas não fala deles. Já foi auxiliar de departamento, copeira e empregada doméstica. Tiramos apenas uma foto. Graça é muito bonita. Estava anoitecendo, combinamos de nos ver outro dia, naquele mesmo horário ou mais cedo no Ibirapuera, portão 5.
    Passei por lá várias segundas, ninguém soube falar dela, arrisquei outros dias, ninguém nunca a viu. O lixo transbordando de papelão. Quantos reais poderia ter feito? - Graça? um grito que não vai ser ouvido. No portão 5, também não esteve. O parque tem dez portões e a semana sete dias.



    Silvia é guardadora de carros.  Sua casa é de rodas e lona azul. Tem garrafões de plástico e papelão pendurados por todos os lados, o cachorro Duque, um varal feito na árvore, cadeiras pra sentar na calçada e a madrinha. O marido está dormindo. Ela lida com a vida de um jeito prático, logo puxa uma cadeira pra eu sentar e chama o Duque pra nos fazer companhia. Usa anéis, pulseiras, camiseta florida de alcinha e barriga de fora, Duque de coleira de pérolas. Seu marido acorda dentro da barraca e grita, eles discutem. Eu levanto. Ele sai, pergunta se sou escritora, se quero conversar com ele. Explico que esse projeto é só com mulheres, quem sabe uma próxima vez... Tudo tem um ritmo acelerado. Para cada frase um movimento. Ela pendura suas calcinhas na árvore, enquanto conversamos mais um pouco. Silvia passa o batom nos lábios, vamos tirar as fotos. - Tira umas fotos aí do meu barraco, ela diz. O marido já tinha entrado. Uma senhora aparece, não sei bem de onde : - Benção madrinha!  Silvia desenha uma casa no caderno, e deixa um beijo com batom. A madrinha fala que ela vai conseguir. Uma foto da madrinha e ela desaparece. Do outro lado da rua, três caras me analisando. Silvia olha para o meu celular e depois pra mim. Guardo o celular no bolso. - Já deixei você tirar foto do meu barraco. Volta outro dia. Agora vai! Dou meu livro pra ela. Agradeço e nos desejamos boa sorte. Acelero o passo, ela encara os três que atravessam a rua. Dessa vez eu estava de carro. Tudo muito rápido. Sabemos que não é para eu voltar.


   
    Quatro damas, quatro flores no asfalto. Aos que vivem, a certeza do agora.


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