quinta-feira, 10 de setembro de 2015

FILHOS DE VÁRIAS VIAGENS - Um Conto

  Dentro de carroças, barracas, carrinhos de super mercado, vestidos de gás carbônico, pelo centro da cidade, margeando o parque, esfriando as costas no cimento, pendurados pelos braços, vão os filhos. Nenhum pedido na boca, não tem sorriso no rosto, sem chocalho ou ursinho, fralda, papinha, mamadeira, livrinhos. Tem só caminho. Filhos de várias viagens, de barrigas vazias, de sete meses que vingaram. Vão misturados, mesmo útero, mesmas rodinhas. Vão sem barco nem mar, com outro tipo de tiro no peito, lá vão os sobreviventes de outras guerras.
No centro da cidade, na porta das Casas Bahia, na Avenida República do Líbano, na Alameda Santos, na Conselheiro Crispiniano, na Matias Aires, em frente à Drogaria São Paulo, na Rua Simas Pimenta, pedindo esmola, dois no colo, dois do lado, um em pé, vendendo mercadoria:
- Compra um pacote de fralda, uma lata de leite Ninho, dá uma moeda, um trocado ?
- Dá um sanduiche, um saco de arroz, um cigarro? Passa uma marmita no cartão, moça?
- Não fumo. Mas, como sim, moço! Já usei fralda, moça, meu filho também, o amigo dele, o vizinho, um pacote ajuda? Uma lata de leite Ninho? Quantos são os seus filhos? Um sanduíche? Entra aqui na padaria. Olhares escuros. Narizes fungando, gente tossindo. Medo de epidemia de gente comendo e se encostando. Fedendo. O dono olha, o do lado, o outro levanta, um pede pra que saia. Melhor um trocado? Um par de meias, toucas, uma passagem pra outro bairro? Perto de mim, não. Quem é essa gente que senta? E a que levanta?  Uma cama na minha casa, um puxadinho, uma escola, uma educação, uma saúde? Um copo de água? Só um cobertor no inverno.
- Compra uma bala, um chiclé, um pano de prato, moça? Olha minha mágica, meu lenço saindo das mãos, meu dedão falso, minhas três bolinhas caindo no chão. Vim de banho tomado, cabelo engomado; essa roupa ganhei outro dia na Rua da Consolação, o sapato é meio furado, encho ele de jornal e depois fico olhando na sola do pé as letras grudadas. Eu já sei lê. Sei brinca com o fogo, jogo as chamas para cima, equilibro o medo nas mãos. O barraco da tia pegou fogo, nois morava lá. Não tinha pra onde ir, viemo pará na rua. Nós dorme cada dia num lugar. Dizem que foi o dono do terreno que queimou, queria fazer uma pizzaria. Todo mundo ficou sem casa. Já comi um pedação de pizza, era bem bom e tava quentinha, tinha queijo e tomate e ovo e presunto também, e as bolinhas verde era azeitona, só que não era pra engoli o caroço, a dona que falou. Ganhei um copo de coca-cola, ela falou pra escova os dentes, deu dinheiro pra compra a escova e a pasta, mas minha mãe pegou. Minha mãe tá ali do lado, tô vendendo balinha, quer compra? Minha mãe tá ali, ó! Do lado de lá do rio, do lado daquele homem, naquela outra calçada com aquele cigarrinho na boca, aquela cara socada, com cabelo puxado, deitada ali naquela grama com a garrafa do lado, tomando banho na poça, xingando aquele outro moço. Olha minha mãe ali, ó, saindo do emprego novo, mandada pra fora, indo pra outra cidade, buscando oportunidade. Olha minha mãe ali, no ônibus que não vai voltar. Vou ficar com a minha vô, que cuida de oito filhos, os da vizinha, os da outra filha e dos meus três irmãos. Minha vó não mudou de cidade, a outro vó foi embora e não voltou. Ninguém mais sabe dela, o nome era Maria, das Dores, da Penha, da Conceição, Aparecida, do Rosário. Acho que das Graças. 
- Eu tô indo encontra minha mãe quinta-feira, a Suelen falou, dia oito do mês que vem, tem quatro anos que não vejo ela, eu tenho doze, vou ajuda ela a cata  latinha, a revirar o lixo, a vender papelão. Meu pai? Quase que conheci, mas morreu de batida da polícia ou de caminhão. Ele gostava da minha mãe. Aí, ela teve que ir embora arrumar trabalho em outro lugar, acontece que tenho da parte dele mais cinco irmão, tá tudo por aí espalhado, já que a outra vó não voltou. Nunca mais deu notícia, acham que ela morreu. Tinha problema de saúde, não conseguia marca o exame e o tempo nem esperou. A filha da minha tia foi trabalha em casa de famíia, disseram que o patrão quis namora ela, a dona mandou ela embora. Ela não conseguiu mais emprego, tava morando na rua, porque os moço pego ela e ela pego no crack, nunca mais largou. A minha mãe já tá boa, mas ainda não tá trabalhando, falta os documento e o meu também não tá pronto por causa do meu vô, sabem o nome dele, mas precisam não sei do que mais, já já eu vou conseguir, a assistente me falou. Tenho cinco, dois, quatorze anos, diz que eu roubei comida lá no super mercado, eu não sabia que não podia, tava morrendo de fome, minha mãe não voltou. Deixou os dois menor comigo dentro daquele carrinho, o de quatro tava chorando, ele tava com fome, eu não sei pedi esmola, achei que ninguém ia vê, foi só dois pacote de bolocha, traquinas de chocolate, nem deu pra comer nenhuma, quando o guarda me pegou, me jogaram no camburão e me levaram pra FEBEM, não sei mais dos meus irmão. Lá aprendi da bandidagem, fome eu não passo mais, um dia vou encontra minha irmã. Tenho certeza disso, vou fazê faculdade, estuda, nem precisa ser doutor. Vou ter minha família, não vou larga minha mulher que nem fez meu avô. Vou conhecer todo os meus filho, quero ter só três, duas meninas e um menino. Ele vai chama Denilson, elas: Daine e  Doriane. Tudo com a mesma letra que nem o nome da minha mãe, Diane.
- Posso ser cabelelera, gosto de cuidar dos outros, perto da outra casa que eu morava, a mulher tinha um salão, fazia mão, tingia o cabelo, punha implante, tudo que as mulher pedia. Hoje ela ficou rica, mudou de lá, tem casa,  até carro ela tem. É a maior bonita, estudo muito pra ser tudo isso.
- O que eu não quero nunca é fica que nem minha mãe, com meus filho cheio de padastro, que nem os meus batia em nós. Saia tudo gritando, minha mãe quebrava tudo que tinha na frente dela, um dia ela me acertou. Por isso que eu fiquei assim. Ia pega de raspão, mas não deu tempo de abaixa. Veio direto na minha cara, era uma garrafa de vidro, mas eu nem ligo mais. Enxergo do outro olho.
       O dia terminava e o vento frio levantava o cinza por trás dos passos. Era hora de ir. As rodas dos carros faziam mais barulho do que as dos carrinhos, as freadas eram bruscas. As ruas eram muitas, mas a casa tinha lugar certo, até o próximo dia, mês, esquina. Até que o "rapa" passe limpando tudo.

Um comentário:

Unknown disse...

Triste realidade. Vive-se de qualquer jeito! Como dizia Drummond: " viver é uma ordem ". Retrato à beira do impossível. Parabéns Bia. Marlene Bilenky