Como castelos de cartas de baralho, temendo um assoprão de vento forte, de carro de
polícia, das mãos da falta de sorte, estendidos um ao lado do outro, ocupando
parte da calçada da avenida Nove de Julho, parte da cidade em que vivem, parte
da terra que não puderam comprar. Feitos de nylon, ziper, papelão e medo,
estendem-se um ao lado do outro. Os que querem e os que não querem estar lá. Há
os que querem? A multidão tem certeza que sim. No primeiro deles, a bandeira do
Brasil forra uma das paredes, pude ver a luz da brasa do cachimbo iluminando o
rosto, do homem, da mulher, do menino, só o vulto. A vida colada ao chão faz
imagem, mas não poesia. Casas de família feitas ao acaso, na junção
dos acontecimentos. Lá, onde a chuva entra e não sai, existem amigdalas
inflamadas, unhas esmaltadas, dentes careados, fuligem de carro que já é
pele, e pulmões. Em frente a elas, andam três que vão e voltam. Arrastando suas
capas de super-heróis do cimento e varrendo as calçadas até chegarem a um fim
imaginário, um após o outro. Deixando trilhas: pedaços de espuma, poças de
urina, restos de comida. A mulher fala sozinha e responde baixinho. Os homens:
um bebe numa garrafa vazia, o outro tosse e depois fuma ou fuma e depois tosse.
O ponto de chegada é o mesmo da partida.
Do
outro lado da avenida, bem em frente, habitantes dos pés de uma escadaria fazem
um churrasquinho com vista para o corredor de ônibus. Poucos eram os espetos,
muitas eram as bocas. Eu, que desta vez passo e não fico, caminho na linha
imaginária, respiro, e o que entra pela narina, ouvidos e boca gruda em
alguma parte minha empurrando meus passos para os próximos passos. Subo
os degraus em frente, não esbarro em quem desce, só olhares e o meu coração que
acelera. Uma guarita desocupada e o segurança de costas, com cassetete
nas mãos, revólver, gravata e alguma roupa. Pergunto pela assistente social que
não estava. Não esteve. Há alguns dias parece que alguém a viu. Ele me conta
das brigas, dos canivetes, das mortes, enquanto o som de um helicóptero abafa
nossa conversa, ninguém corre. Desta vez o tiro, susto, furto, não era
ali. Ele continua falando com olhos escancaradamente geométricos, rodando
360 graus, os meus só os acompanham. O vapor do corredor em frente chega
até mim, me convida. Banheiros à direita, salas e murais, à esquerda. Peço
licença e entro, a água bege escura que escorre dos chuveiros traça caminhos
interrompidos nas paredes como linhas das mãos de curta duração. Os azulejos
choram, e não são os únicos, ouve-se o som da dor e dos pingos de água, a
sujeira que desce entope o ralo, a água não escoa, temos todos os pés
molhados de sujeiras diferentes. Quem sabe disso?
Quadros
de cortiça pendurados, cursos e oportunidades de emprego. Brilham os
azulejos de possibilidades. Corredores de portas fechadas. Seria possível
encontrar a assistente social em alguma delas? Escondida debaixo da mesa,
dormindo a insônia da impossibilidade? O lugar era grande, mas sem refeitório,
só banho, bancos e vãos margeados de gente. A Xuxa na tv, a roupa para lavar e
o varal para estender. Passa por mim uma moça de camisa de flores, passa e não
me vê. Olhos azuis escuros, voltados para dentro. Algumas poucas palavras
e descubro que também estava à procura da assistente social. Sentamos no
último degrau da escada que leva às barracas de nylon, ao churrasco, à
fuligem. Seu nome é Tárika, o meu Beatriz. Conto do meu trabalho, ela da
tentativa de buscar R$ 80,00 reais. A assistante não foi, Tárika não
recebeu o auxílio, no dia do auxílio. Teria que voltar às 17h.00. Entrar
na fila da senha para ter um lugar para dormir. A kombi leva os que chegam
antes, era uma ordem feita às 17h00. Esperam sentados, de olhos fechados
e boca aberta a hora da senha. Esperam quase tombando, nos bancos em que
não se pode deitar, o dia acabar, o final da tarde. Esperam horas pelas
dezessete horas.
-
Comecei cedo com anfetaminas, me sentia gorda. A voz trêmula, os dedos da mão,
a língua. O céu escuro, seus olhos também. Alta, sorriso de aço,
ganchos separando os dentes que insistiam em se juntar. Forças
contrárias. Tudo que era próximo pedia separação. Flores rosas desenhadas na
sua blusa roxa. Flores tristemente rosas, despejadas, boiando em uma trama roxa.
Caules sem clorofila. Ela, uma beleza encaracolada nos cabelos. No seu alto, na
parte que se conecta ao céu, uma copa anelada e sem brilho. Um fio buscando o
outro, fazendo nó. Dona de nenhum jardim, dona de nada. Tárika era magra. - Eu
malhava, malhava e me sentia gorda, ela dizia. Precisava das anfetetaminas, vim
parar aqui. Hoje quando vejo alguém gordo, tenho a mesma aflição. E a falta de
banho, de trabalho, os oitenta reais, a comida? Penso eu. - Não quero ter
um corpo assim, um corpo gordo. Volto mais uma vez meu olhar para os seus
olhos que de tão profundos se perderam dentro, uma face de músculos que não se
movimentam. Uma boca cheia de anfetamina que fala. - Não uso mais anfetamina.
Que mente. - A Anvisa tirou do mercado. Pelo amor de deus por que a Anvisa fez
isso? Ela não grita, mas a ouço. Ouço as palavras que se engancharam no aço dos
dentes. Nos quarteirões acima, o eco da subtramina, varrido para debaixo dos
tapetes persas, de lã, de fuxico. O peso da nossa carne aflige.
-
Moça, enquanto falo com você tem essa voz que escuta o que estou falando. -
Você não sabe como chama isso, sabe? Sei, Tárika, a esquisofrenia tem
formas diferentes, não respondo. - É como se eu estivesse de fora me
observando, é horrível, dá medo. Todos sabemos, Tárika. - Como você se
chama? esqueceu que já havíamos nos apresentado. - Sabe, Beatriz, tenho a
sensação que vou enlouquecer, aí passa. Não penso que sou louca, porque tenho
bastante noção da realidade. Quando acho que não vai mais me acontecer, que acabou,
que me tenho novamente, logo me perco. Falo com você, penso no que estou
falando, ouço o que estou falando, vejo o meu corpo como se não fosse meu, uma
borda. Uma voz que sai, mas que parece que não é da minha boca. Não consigo
parar de falar. Às vezes é assim. Sinto que perdi algo e que agora não
volta mais. Como uma roda gigante que na hora de parar sobe bruscamente. Um
salto que nunca alcança o chão. Quero descer e estou lá em cima, só desespero.
-
Uma, duas vezes, um dia inteiro assim. Um eu que se ouve e fala. Tudo ao mesmo
tempo. Esquisofrenia, foi meu último diagnóstico. Quero me curar, só não vou me
internar, isso não. Já saí das drogas. Quero alguma coisa que pare esses
pensamentos. Já estudei até o segundo grau. Trabalhei de babá, recepcionista, agora
não dá pra fazer nada. Perguntei pra médica se ela me achava louca, eu acho
ela muito mais louca do que eu, ficou de me trazer a receita, sabe que eu
preciso, não quero ficar assim tremendo. Marca hora e nunca aparece igual a
assistente social. Eu venho, elas não.
Enquanto
sua mão treme a fala é lúcida e o rosto de Tárika um abismo. - A minha
irmã trabalha numa boate como garota de programa, já se drogou muito também. Eu
e ela viemos morar em São Paulo, somos de Santos e temos um irmão aqui, que é
rico e publicitário, mas nem quer ver a nossa cara. A última vez disse que
não ia ajudar mais. Já demos muito trabalho pra ele por causa das
drogas. Ele tem razão. Você não imagina como é horrível ser mulher e viver na
rua. No útimo abrigo o cara tentou me agarrar, me puxou pelo cabelo. Eu gritei
pelo assistente social, o cara era o assistente social. Na rua não dá pra
dormir é muito perigoso. Eu quero me tratar, preciso de um psquiatra pra me dar
remédio pra parar com essa tremedeira, pra entender minha cabeça.
Remédios para sair do vício, parar de tremer. Tremer com os
remédios que fazem parar de tremer. Um psquiatra Tárika, - Eu tenho um
amigo, posso falar com ele. Você quer? Ela diz que sim. Fica contente. Quarenta
e dois anos, recomeçar. Combinamos de nos ver novamente. No próximo sábado,
fotos no parque e o nome do meu amigo. Ela adora parques. - Nos encontramos
aqui às onze horas, o parque é bem pertinho. Saímos de lá mais felizes. Falo
com meu amigo psquiatra, ele quer ajudá-la. Espero ansiosa pelo nosso
reencontro.
O
dia amanhece lindo, as fotos não são tiradas. Tárika não apareceu. Volto na
semana seguinte, ninguém nunca a viu, nem sabe quem ela é. Falo do seus olhos,
cabelo, nome. O aparelho nos dentes. Quarenta e dois anos. Ninguém a conhecia, pergunto
para o segurança que já era outro, com as mesmas vestes e o mesmo tipo de medo.
Aqui é assim, a gente não guarda os nomes não, são tantas que passam. Umas
nunca mais voltam, essa aí, acho que nunca vi. A assistente social não
tinha ido trabalhar. Era dia de auxílio. Espero o horário da Kombi, Tárika não
apareceu. Torço para que tenha encontrado: um médico, trabalho, a irmã, o
irmão, um lugar para dormir, comer, oitenta reais, um jeito de parar de
tremer. Um pouco de silêncio.
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