quinta-feira, 13 de agosto de 2015

TÁRIKA VANESKA VIANNA

Como castelos de cartas de baralho, temendo um assoprão de vento forte, de carro de polícia, das mãos da falta de sorte, estendidos um ao lado do outro, ocupando parte da calçada da avenida Nove de Julho, parte da cidade em que vivem, parte da terra que não puderam comprar. Feitos de nylon, ziper, papelão e medo, estendem-se um ao lado do outro. Os que querem e os que não querem estar lá. Há os que querem? A multidão tem certeza que sim. No primeiro deles, a bandeira do Brasil forra uma das paredes, pude ver a luz da brasa do cachimbo iluminando o rosto, do homem, da mulher, do menino, só o vulto. A vida colada ao chão faz imagem, mas não poesia. Casas de família feitas ao acaso,   na junção dos acontecimentos. Lá, onde a chuva entra e não sai, existem amigdalas inflamadas, unhas  esmaltadas, dentes careados, fuligem de carro que já é pele, e pulmões. Em frente a elas, andam três que vão e voltam. Arrastando suas capas de super-heróis do cimento e varrendo as calçadas até chegarem a um fim imaginário, um após o outro. Deixando trilhas: pedaços de espuma, poças de urina, restos de comida. A mulher fala sozinha e responde baixinho. Os homens: um bebe numa garrafa vazia, o outro tosse e depois fuma ou fuma e depois tosse. O ponto de chegada é o mesmo da partida.
Do outro lado da avenida, bem em frente, habitantes dos pés de uma escadaria fazem um churrasquinho com vista para o corredor de ônibus. Poucos eram os espetos, muitas eram as bocas. Eu, que desta vez passo e não fico, caminho na linha imaginária, respiro, e o que entra pela narina, ouvidos e boca gruda em alguma parte minha empurrando meus passos para os próximos passos.  Subo os degraus em frente, não esbarro em quem desce, só olhares e o meu coração que acelera. Uma guarita desocupada e o segurança  de costas, com cassetete nas mãos, revólver, gravata e alguma roupa. Pergunto pela assistente social que não estava. Não esteve. Há alguns dias parece que alguém a viu. Ele me conta das brigas, dos canivetes, das mortes, enquanto o som de um helicóptero abafa nossa conversa, ninguém corre. Desta vez o tiro, susto, furto, não era ali.  Ele continua falando com olhos escancaradamente geométricos, rodando 360 graus, os meus só os acompanham. O vapor  do corredor em frente chega até mim, me convida. Banheiros à direita, salas e murais, à esquerda. Peço licença e entro, a água bege escura que escorre dos chuveiros traça caminhos interrompidos nas paredes como linhas das mãos de curta duração. Os azulejos choram, e não são os únicos, ouve-se o som da dor e dos pingos de água,  a sujeira que desce  entope o ralo, a água não escoa, temos todos os pés molhados de sujeiras diferentes. Quem sabe disso?
Quadros de cortiça pendurados, cursos e oportunidades de emprego. Brilham  os azulejos de possibilidades. Corredores de portas fechadas. Seria possível  encontrar a assistente social em alguma delas? Escondida debaixo da mesa, dormindo a insônia da impossibilidade? O lugar era grande, mas sem refeitório, só banho, bancos e vãos margeados de gente. A Xuxa na tv, a roupa para lavar e o varal para estender. Passa por mim uma moça de camisa de flores, passa e não me vê.  Olhos azuis escuros, voltados para dentro. Algumas poucas palavras e descubro que também estava à procura da assistente social.  Sentamos no último degrau da escada que leva às barracas  de nylon, ao churrasco, à fuligem. Seu nome é Tárika, o meu Beatriz. Conto do meu trabalho, ela da tentativa de buscar R$ 80,00 reais.  A assistante não foi, Tárika não recebeu o auxílio, no dia do auxílio. Teria que voltar às 17h.00.  Entrar na fila da senha para ter um lugar para dormir. A kombi leva os que chegam antes, era uma ordem feita às 17h00.  Esperam sentados, de olhos fechados e boca aberta a hora da senha. Esperam quase tombando, nos bancos  em que não se pode deitar, o dia acabar, o final da tarde. Esperam horas pelas dezessete horas.
- Comecei cedo com anfetaminas, me sentia gorda. A voz trêmula, os dedos da mão, a língua.  O céu escuro, seus olhos também. Alta, sorriso de aço, ganchos  separando  os dentes que insistiam em se juntar. Forças contrárias. Tudo que era próximo pedia separação. Flores rosas desenhadas na sua blusa roxa. Flores tristemente rosas, despejadas, boiando em uma trama roxa. Caules sem clorofila. Ela, uma beleza encaracolada nos cabelos. No seu alto, na parte que se conecta ao céu, uma copa anelada e sem brilho. Um fio buscando o outro, fazendo nó. Dona de nenhum jardim, dona de nada. Tárika era magra. - Eu malhava, malhava e me sentia gorda, ela dizia. Precisava das anfetetaminas, vim parar aqui. Hoje quando vejo alguém gordo, tenho a mesma aflição. E a falta de banho, de trabalho, os oitenta reais, a comida? Penso eu. -  Não quero ter um corpo assim, um corpo gordo. Volto  mais uma vez meu olhar para os seus olhos que de tão profundos se perderam dentro, uma face de músculos que não se movimentam. Uma boca cheia de anfetamina que fala. - Não uso mais anfetamina. Que mente. - A Anvisa tirou do mercado. Pelo amor de deus por que a Anvisa fez isso? Ela não grita, mas a ouço. Ouço as palavras que se engancharam no aço dos dentes. Nos quarteirões acima, o eco da subtramina, varrido para debaixo dos tapetes persas, de lã, de fuxico. O peso da  nossa carne aflige.
- Moça, enquanto falo com você tem essa voz que escuta o que estou falando. - Você  não sabe como chama isso, sabe? Sei, Tárika, a esquisofrenia tem formas diferentes, não respondo. -  É como se eu estivesse de fora me observando, é horrível, dá medo. Todos sabemos, Tárika.  - Como você se chama? esqueceu que já havíamos nos apresentado. - Sabe, Beatriz, tenho a sensação que vou enlouquecer, aí passa. Não penso que sou louca, porque tenho bastante noção da realidade. Quando acho que não vai mais me acontecer, que acabou, que me tenho novamente, logo me perco. Falo com você, penso no que estou falando, ouço o que estou falando, vejo o meu corpo como se não fosse meu, uma borda. Uma voz que sai, mas que parece que não é da minha boca. Não consigo parar de falar.  Às vezes é assim. Sinto que perdi algo e que agora não volta mais. Como uma roda gigante que na hora de parar sobe bruscamente. Um salto que nunca alcança o chão. Quero descer e estou lá em cima, só desespero.
- Uma, duas vezes, um dia inteiro assim. Um eu que se ouve e fala. Tudo ao mesmo tempo. Esquisofrenia, foi meu último diagnóstico. Quero me curar, só não vou me internar, isso não. Já saí das drogas. Quero alguma coisa que pare esses pensamentos. Já estudei até o segundo grau. Trabalhei de babá, recepcionista, agora não dá pra fazer nada. Perguntei pra médica se ela me achava louca, eu acho ela  muito mais louca do que eu, ficou de me trazer a receita, sabe que eu preciso, não quero ficar assim tremendo. Marca hora e nunca aparece igual a assistente social. Eu venho, elas não.
Enquanto sua mão treme a fala é lúcida e o rosto de Tárika um abismo. - A  minha irmã trabalha numa boate como garota de programa, já se drogou muito também. Eu e ela viemos morar em São Paulo, somos de Santos e temos um irmão aqui, que é rico e publicitário, mas nem quer ver a nossa cara. A última vez disse que não  ia ajudar mais.  Já demos muito trabalho pra ele por causa das drogas. Ele tem razão. Você não imagina como é horrível ser mulher e viver na rua. No útimo abrigo o cara tentou me agarrar, me puxou pelo cabelo. Eu gritei pelo assistente social, o cara era o assistente social. Na rua não dá pra dormir é muito perigoso. Eu quero me tratar, preciso de um psquiatra pra me dar remédio pra parar com essa tremedeira, pra entender minha cabeça.  Remédios para  sair do vício, parar de tremer. Tremer com os remédios que fazem parar de tremer. Um psquiatra Tárika, -  Eu tenho um amigo, posso falar com ele. Você quer? Ela diz que sim. Fica contente. Quarenta e dois anos, recomeçar. Combinamos de nos ver novamente. No próximo sábado, fotos no parque e o nome do meu amigo. Ela adora parques. - Nos encontramos aqui às onze horas, o parque é bem pertinho. Saímos de lá mais felizes. Falo com meu amigo psquiatra, ele quer ajudá-la. Espero ansiosa pelo nosso reencontro.
O dia amanhece lindo, as fotos não são tiradas. Tárika não apareceu. Volto na semana seguinte, ninguém nunca a viu, nem sabe quem ela é. Falo do seus olhos, cabelo, nome. O aparelho nos dentes. Quarenta e dois anos. Ninguém a conhecia, pergunto para o segurança que já era outro, com as mesmas vestes e o mesmo tipo de medo. Aqui é assim, a gente não guarda os nomes não, são tantas que passam. Umas nunca mais voltam, essa aí, acho que nunca vi. A assistente social  não tinha ido trabalhar. Era dia de auxílio. Espero o horário da Kombi, Tárika não apareceu. Torço para que tenha encontrado: um médico, trabalho, a irmã, o irmão, um lugar para dormir, comer,  oitenta reais, um jeito de parar de tremer. Um pouco de silêncio.

Av. Nove de Julho






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