quinta-feira, 20 de agosto de 2015

ELISA


- Dona, eu sou má. Trinta e cinco anos. Já fiz de tudo, já roubei, enfiei faca. Sofrimento de verdade, dona. Não conheci meu pai nem minha mãe. Quem sabe se eu tivesse tido pai e mãe eu seria uma pessoa diferente. Fui criada na FEBEM. Quem sabe se você tivesse pai e mãe você fosse uma pessoa diferente? Quem sabe, Elisa? - Todo mundo precisa de um caminho, senão nos sentimos nada. Ficamos na rua vegetando. Ex-presidiária, palito nos dentes, folga duas vezes por semana. Cabelo de reco, setenta e oito quilos. Era ele. Talvez um pouco mais, oitenta. Era ela. Ombros largos, mãos grandes e um sinal de positivo. Sorriso e avental brancos. Era ela Elisa. Era ele Elisa. Piercing na boca, dentes grandes. - Esse pessoal que vem pra cá, só vegeta, moça. Quem sabe se eles tivessem pai e mãe, não vegetassem? Quem sabe o sofrimento mudasse de nome? De cheiro? Nem existisse? Fosse o dobro?
Passei por lá, começo de tarde, uma, uma e pouco. Eles almoçados das onze horas. Depois, só o lanche das duas. O dia fracionado para se alimentar. Bebês com papas programadas. O relógio do dia, o estômago. No refeitório, duas mesas brancas e grandes de fórmica, três atendentes passando de um lado para o outro, três toucas, três aventais brancos. A rua cheia, o refeitório vazio. A tv trabalhando em silêncio e o burburinho do lado de fora.
- Volta mais tarde, já já eles entram pro lanche. A maioria que frequenta aqui é homem, viu moça? De vez em quando vem umas por aqui, só de vez em quando. Onde comem as mulheres, então? Onde se alimentam as mulheres? Onde é a cozinha delas? Qual comidinha? As panelinhas? O papá? No imaginário de qualquer menininha as xícaras e a mesa. A boneca sentada ao lado. - Abre a boca. Abre a boca e a comida que não está lá. Onde comem essas mães meninas mulheres crianças velhas da rua?
- Ok, volto mais tarde. Subo a ladeira de quem mora na rua. Vinte minutos. As calçadas lotadas de homens esperando a hora de lanchar. Uma e trinta e cinco. No último quarteirão, um shopping. Casa dos que almoçam em pé. No balcão, os atendentes também guardam os cabelos para que não caiam na comida. - Um suco e uma salada. Mastigo em silêncio até alguns minutos antes das quatorze horas.
A porta de vidro, a descida e uma rua inteira sem cor. Cinco para as duas. O lado de fora daquele lugar higienizado é uma calçada esburacada e faminta, cheia de gente. Os espalhados e mais outros, uma única mulher. Uma grande família em fila caminhando para a refeição. Uma família de homens esfarrapados e fedidos. E se eles tivessem tido pai e mãe, Elisa? E se tiveram? Pais e pais. Homens, só homens. Guardadas no cabelo de todos: histórias, insetos e nós. A única senhora não quis falar comigo. Eu, esperando que o medo desaparecesse entre os dentes. Quantos seriam? Quarenta, cinquenta? Dois homens miseráveis e famintos? Um? A comida vinha junto com o cheiro da falta de banho, das mantas imundas que não aquecem nem esfriam. Doze ou vinte e cinco graus? Castigados por todo tipo de droga e sentados ali para lanchar. A cabeça baixa, eram meninos obedientes e desdentados à mesa na hora do lanche. Ombros colados nos ombros, em silêncio, com o copo de suco nas mãos. Entrariam e sairiam toda vez que o gongo tocasse o relógio da fome. Eu, na mesa ao lado, falava acelerada sem abrir a boca, corria quieta sem me levantar, me aproximava mesmo que longe. Esperava por uma única mulher que não vinha. Elisa, voltou - Hoje a senhora não deu sorte não, as vezes aparece uma ou outra. Hoje veio só homem. Eu trabalho aqui, mas  também sou moradora de rua.
Tatuagem no braço e na mão. Tatuagem que já não era imagem. - Tô aqui cumprindo pena, tenho salário. Faço esse trabalho e eles abatem da pena. Me sinto útil aqui. A gente tem que se sentir útil, dona. Senão a vida passa. Só tô aqui por causa dela, minha mulher. Uma história de amor. Torço eu pelas histórias de amor.
- Porque agora eu sou um ser humano de verdade, porque antigamente eu não era não. Eu era bicho do mato. Antes, eu era sensível e as pessoas só me dando pra trás, tentando me matar, então eu comecei a ser ruim também. Enfiei a faca pra matar, dona. A faca na mesa, eu e Elisa. Nossos poucos gestos. A história que não era outra. Tudo que não era ao todo verdade.
- E depois, Elisa?
- Depois nada, só viver. Nós morador de rua não pensa, nós não tem ninguém. Nós também não vai sofrer porque niguém vai ligar pra nós. Eu não tenho nada a perde, fazê o que então? A pessoa nunca tem oportunidade, dona. Eu, é a primeira vez depois de trinta e quatro anos. Uma aliança prateando a mão direita. - Tenho minha mulher, dona. Tenho amor. Eu vim pára aqui, porque a moça, a minha namorada, a minha mulher, me levou pra faze inscrição. De trezentos, quatrocentos que passa  por aqui, só uns dois fica fazendo grosa, pensa que nois é escravo deles. Tem que ter estrutura boa pra trabalhar aqui nesse lugar. Aqui nós escuta tudo, tem pessoa que tá aqui e fica comendo e xingando. Não sabe agradecê. Eu já usei várias drogas, mas parei tem 22 anos. Vinte e dois anos que eu não uso mais droga e não bebo. Eu era uma cachaceira das piores, lá da baixada do Glicério. Só vivia com a cinquenta e um na mão. Eu falava pra mim, um dia eu vou parar. Demorô mas eu consegui, tô dando valor pra mim mesma. Tô aqui aprendendo a viver. Se a gente fala pro pessoal, eles não escuta, aí vai pará na cadeia, toda fudida, desculpa a palavra. Aí que você fala que aquilo não é pra você. Entendeu? Eu tive na cadeia desde os meus 18 anos, sai agora faz cinco. Foi em 2010. Fiquei 5 anos, 4 anos, 3 anos, 2 anos, 1 ano e 9 meses. Eu ficava um mês na rua e cinco anos na cadeia. Dois meses... Eu não vivi nada, a real é essa. Olha moça, eu era das piores, das piores. Não tinha medo não, agora eu tenho medo, tenho algo a perder. Antes, na rua, eu pensava em me matar.Todo mundo batia a porta pra mim porque eu era sapatão. Aí essa mina, aí a Amanda me ajudou, porque eu já tava bebendo de novo. E os 22 anos? Aqui eu ganho 700 reais. Eu tava sem lugar porque a prefeitura tiro nois da onde a gente tava. A prefeitura tá fechando tudo, não deixam lugar pra gente mora. Lá onde eu moro, eu cuido de dez cachorros.
E eles, os outros, os que não falam, os que se arrebentaram no álcool, os que não tem trabalho, os que ainda estão por aí tentando viver, doentes, esfomeados, alucinados, esfarrapados. Os que se fecharam em si antes da prefeitura? Esses uns, tão próximos? 
 - Dez cachorros? 
 - É dona, eu e minha esposa. Nois pega na rua cachorrinho que fica sofrendo. Pelo menos eles vão dá valor pra gente. Nois mora ainda debaixo da ponte da 23 de maio. Sabe, moça, outro dia  eu vi minha irmã. Minha irmã, moça, depois de dez anos. Pensei que nunca mais eu ia vê ela. Ela veio aqui, eu chorei, lógico. Achei que eu ia desmaia. Eu vivo bem dona, se eu falo que não vivo eu tô mentindo.


R. Dr. Penaforte Mendes 



    
               

Um comentário:

Unknown disse...

Nada fácil a história de Elisa! Retrato medonho!