Um cobertor, um quadriculado em cinza e azul e um jogo
de damas sem diversão. Quinze mulheres, moradoras de rua, cochichando nessas
páginas em silêncio. Trinta mulheres moradoras de rua. Suas histórias coladas
na sola dos nossos sapatos, no retrovisor dos carros, nas trancas, nos desvios.
Histórias sem disfarce. O cheiro de urina quente revira o estômago, faz lembrar
meus próprios orgãos. Somos todos feitos de fígado e vesícula. Novecentas
mulheres do lado de fora.
As falas aspiradas. O lixo, não. Tudo muito perto. Por
instantes, uma coisa só. O lixo, o cheiro do lixo, o corpo dobrado, o grito, as
histórias de amor, as pregas do rosto, o lixo, as valas nas calçadas, a garrafa
de pinga, o resto de comida, a fumaça e os sonhos, as unhas pintadas. Elas, um
alucinógeno descolorido nas ruas de São Paulo. Um DNA falho, do álcool, do
crack, do país em que nasceram.
Bailarinos
do cotidiano, tentamos não nos enroscar. Suspendemos os pés, ficamos nas
pontas. As ruas transbordam. As mulheres boiam. Molhamos só as nossas pernas. Cartilagens entre
os dedos nos deixam nadar. Não nos afogamos. Elas, esparramadas pelas calçadas.
Nós, um andar acima. As águas
batem nas canelas das nossas casas. Dormimos de sapatos. Nossos troncos permanecem secos. Cabeças e
corações. Esticamos os braços para os céus, fazemos nossas preces. Elas, adormecem
no frio. Raízes no mangue.
Acordo do lado de cá. Metros quadrados com teto. Estou
no décimo andar. Direção oposta. Do lado de lá dos portões de ferro, a voz
dela inunda a rua. Afoga meus sentidos.
A voz dela, que é só gritos. Entope os ouvidos, estoura. A voz dela me joga no mais bestial dos mundos. Afoga. A voz dela grita o
meu grito. Rompe e desaparece.
O volume da sua dor diária queima o arroz da minha
panela. O volume de sua dor diária apodrece meus alimentos orgânicos. O volume
me encontra. Desço as escadas procurando pelo térreo. Eu, num afogamento seco. O som do seu grito sai dos ouvidos,
se aloja no pálato, se avoluma, dá o
mau gosto das próximas horas. Um berro que não para, um moto contínuo.
Uma única respiração que entra nas
narinas das madrugadas.
Sufoca. Cria espuma na boca. Borbulha, molha. Vomito o meu bem estar, só por
alguns instantes. As vezes nos encontramos na insônia. Noutras, me tira do
sono. A sua falta de palavras encontra a tentativa das minhas. O seu som está
na minha língua, mas não fala. Ela grunhe mais alto do que eu.
Um dia, um café, um cigarro, algumas coisas que
aquecem. A aproximação. Alguma
coisa que aquece. Tudo lento. A vontade
que engordou com o tempo. Tudo muito lento. Gramas e medo. A sua casa
uma mala com trancas, dentro dela tudo tem lugar certo. Seu nome Joana. Seu
grito, Maria. Fora da mala o
cadeado no chão que não prendeu amores em pontes de rios poluídos. Roupas,
cigarros, livros, uma boneca, um troféu e a falta. Duas rodas, uma touca
cirúrgica na cabeça, em frente à livraria estaciona Joana. Ela me convidou para
as calçadas, para os sofás de papelão, casas sem banho e de batom. Biblías e
cachorros. Drogas e documentos.
Desejos.
Quem são essas, que a sociedade não inclui? Que
precisam de documentos, serviços médicos e comida. Que matam. Nós não? Facas e
estiletes. Quais são as nossas armas? O nosso crime diário? O pó das narinas dos dentes descoloridos
de branco? Quem são essas ex-babás, mães de família, pessoas amontoadas no
chão? Nós nos sofás de couro, nas garrafas de Red Label. Nossas drogas são
diferentes das delas? Nossos filhos são diferentes dos delas? Nossos globos
oculares habitam de forma diferente suas órbitas? Nosso deus não é descamisado.
Histórias. As que são possíveis de serem contadas,
para dentro de nossas casas. Para dormirem ao nosso lado. Reservadas nos seus
mundos elas pedem passagem. Nomes e faces. Joana, Silvia, Telma ,Tuva. Outras. Todas. Tárika,
Aparecida. Tantas. Caixas de ossos e desejos. Entre eu e elas, o tamanho do
corpo, a cutícula, a água quente
do banho. A fala. Entre elas e quem agora as lê, os ruídos. No papel a
sombra. Nas janelas as persianas semi abertas disfarçam o desconhecido.
Mulheres, vozes em mim.
4 comentários:
Querida Bia, vc escreve muito bem e faz um retrato latente e poético das mulheres esquecidas, que poderiam ser qualquer uma de nós! Que as histórias possam ser lidas, percebidas e mudadas e ganhem vôo e dimensões, como a escrita que você elaborou, de forma tão bela! Bjs
Bia, quantos tons! Quero mais.Bj
Sim Bia, tocante, cheio de poesia e realidade. Beijos
Sim Bia, tocante, cheio de poesia e realidade. Beijos
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