quinta-feira, 6 de agosto de 2015

QUEM SÃO ELAS

Um cobertor, um quadriculado em cinza e azul e um jogo de damas sem diversão. Quinze mulheres, moradoras de rua, cochichando nessas páginas em silêncio. Trinta mulheres moradoras de rua. Suas histórias coladas na sola dos nossos sapatos, no retrovisor dos carros, nas trancas, nos desvios. Histórias sem disfarce. O cheiro de urina quente revira o estômago, faz lembrar meus próprios orgãos. Somos todos feitos de fígado e vesícula. Novecentas mulheres do lado de fora.
As falas aspiradas. O lixo, não. Tudo muito perto. Por instantes, uma coisa só. O lixo, o cheiro do lixo, o corpo dobrado, o grito, as histórias de amor, as pregas do rosto, o lixo, as valas nas calçadas, a garrafa de pinga, o resto de comida, a fumaça e os sonhos, as unhas pintadas. Elas, um alucinógeno descolorido nas ruas de São Paulo. Um DNA falho, do álcool, do crack, do país em que nasceram.
Bailarinos  do cotidiano, tentamos não nos enroscar. Suspendemos os pés, ficamos nas pontas. As ruas transbordam. As mulheres boiam. Molhamos  só as nossas pernas. Cartilagens entre os dedos nos deixam nadar. Não nos afogamos. Elas, esparramadas pelas calçadas. Nós, um andar acima.  As águas batem nas canelas das nossas casas. Dormimos de sapatos. Nossos  troncos permanecem secos. Cabeças e corações. Esticamos os braços para os céus, fazemos nossas preces. Elas, adormecem no frio. Raízes no mangue.
Acordo do lado de cá. Metros quadrados com teto. Estou no décimo andar. Direção oposta. Do lado de lá dos portões de ferro, a voz dela  inunda a rua. Afoga meus sentidos. A voz dela, que é só gritos. Entope os ouvidos, estoura. A voz dela  me joga no mais bestial  dos mundos. Afoga. A voz dela grita o meu grito. Rompe e desaparece.
O volume da sua dor diária queima o arroz da minha panela. O volume de sua dor diária apodrece meus alimentos orgânicos. O volume me encontra. Desço as escadas procurando pelo térreo.  Eu, num afogamento seco. O som do seu grito sai dos ouvidos, se aloja no pálato, se avoluma, dá o  mau gosto das próximas horas. Um berro que não para, um moto contínuo. Uma única respiração que entra nas  narinas  das madrugadas. Sufoca. Cria espuma na boca. Borbulha, molha. Vomito o meu bem estar, só por alguns instantes. As vezes nos encontramos na insônia. Noutras, me tira do sono. A sua falta de palavras encontra a tentativa das minhas. O seu som está na minha língua, mas não fala. Ela grunhe mais alto do que eu.
Um dia, um café, um cigarro, algumas coisas que aquecem. A  aproximação. Alguma coisa que aquece. Tudo lento. A vontade  que engordou com o tempo. Tudo muito lento. Gramas e medo. A sua casa uma mala com trancas, dentro dela tudo tem lugar certo. Seu nome Joana. Seu grito, Maria. Fora  da mala o cadeado no chão que não prendeu amores em pontes de rios poluídos. Roupas, cigarros, livros, uma boneca, um troféu e a falta. Duas rodas, uma touca cirúrgica na cabeça, em frente à livraria estaciona Joana. Ela me convidou para as calçadas, para os sofás de papelão, casas sem banho e de batom. Biblías e cachorros. Drogas e documentos.  Desejos.
Quem são essas, que a sociedade não inclui? Que precisam de documentos, serviços médicos e comida. Que matam. Nós não? Facas e estiletes. Quais são as nossas armas? O nosso crime diário?  O pó das narinas dos dentes descoloridos de branco? Quem são essas ex-babás, mães de família, pessoas amontoadas no chão? Nós nos sofás de couro, nas garrafas de Red Label. Nossas drogas são diferentes das delas? Nossos filhos são diferentes dos delas? Nossos globos oculares habitam de forma diferente suas órbitas? Nosso deus não é descamisado.
Histórias. As que são possíveis de serem contadas, para dentro de nossas casas. Para dormirem ao nosso lado. Reservadas nos seus mundos elas pedem passagem. Nomes e faces.  Joana, Silvia, Telma ,Tuva. Outras. Todas. Tárika, Aparecida. Tantas. Caixas de ossos e desejos. Entre eu e elas, o tamanho do corpo, a cutícula, a água quente  do banho. A fala. Entre elas e quem agora as lê, os ruídos. No papel a sombra. Nas janelas as persianas semi abertas disfarçam o desconhecido.

Mulheres, vozes em mim.

4 comentários:

cristina disse...

Querida Bia, vc escreve muito bem e faz um retrato latente e poético das mulheres esquecidas, que poderiam ser qualquer uma de nós! Que as histórias possam ser lidas, percebidas e mudadas e ganhem vôo e dimensões, como a escrita que você elaborou, de forma tão bela! Bjs

Unknown disse...

Bia, quantos tons! Quero mais.Bj

eliane daruj disse...

Sim Bia, tocante, cheio de poesia e realidade. Beijos

eliane daruj disse...

Sim Bia, tocante, cheio de poesia e realidade. Beijos