quinta-feira, 27 de agosto de 2015

APARECIDA - DOIS DIAS


A pele do rosto maquiada e suja, os olhos pretos amendoados, borrados de preto, amaciados. Uma pintura em crayon, esse era o rosto de Aparecida, uma mulher de quarenta e dois anos com cara de menina, não moça. Menina de uma certa idade. Tinha ao seu lado Danilo, o namorado, um moço com cara de compromisso, cabelo com gel e camisa de mangas curtas, calça jeans e tênis, um jovem pronto para não estar lá. Ela camiseta cor de rosa, cabelo dividido ao meio, calça leg preta e um broche de flor com pétalas que não chegavam a colorir: cinza, rosa e pretas, amarrotadas voltadas para baixo. O broche alfinetado no peito que, se pudesse ve-lo dentro,  vería também em rosa, cinza e preto. Eu que era quase da mesma altura, outra idade, quase com as mesmas roupas, outra cor de camiseta, não levava uma rosa no peito, calçava o mesmo tipo de sapato de Danilo, estava chegando. As tiras brancas da sandália de Aparecida eram bifurcações entre os dedos, caminhos. Haveria uma outra possibilidade nos próprios pés? O chão se abriria em dois? De que lado eram obrigados a ficar? Dali até a outra esquina, até a próxima praça? Quão mais longo era o caminho? Para onde iriam com os pés calçados e bifurcados, com as solas do tênis comidas pelo asfalto, com as tiras da sandália cedendo para o tempo? Esperariam anoitecer? Esperariam que eu fosse embora, para borrar os olhos, espalhar o gel, recolher as pétalas? Naquele dia ficamos.
Éramos três que buscavam respostas. Em pé, equilibrávamos nos calcanhares os anseios. Aparecida falava e eu queria todas as letras, todas as pausas, a sua falta de lógica. Ela omitia partes da verdade, da mulher que era, mas aquele era o todo, e era desenhado por delicadezas nos gestos, na fala rouca, nos riscos de esmalte das unhas dos pés, nas flores esmaecidas.
Conversamos em pé dentro da sua casa feita de dobraduras de papelão, de sacolas de papel, mantas e mochilas. Sem paredes nem vizinhos. Eles, criaturas pequenas,  encolhidas, comprimindo-se naquele espaço diminuto, respirando menos ar, tentando ser menos matéria. Atrás de suas nucas, mas sem tocá-las, alguns poucos metros acima de suas cabeças, na desproporção de uma pincelada, um terreno grande e baldio fazia cenário para o que não era tela nem teatro. Poderiam estar do lado de lá, passeando por salas, quartos e banheiros, filhos na escola, a comida no prato, mas não estavam. Uma cerca que não era grade separava o real do que não era arte nem cenário: um vaso sanitário branco e quebrado plantado na terra, as árvores que não nasceram em volta, uma terra infértil. O que não se contempla. Tudo a nossa volta era cinza.  O muro branco, a pichação preta, o papelão, o cobertor furta cor. As mulheres que vivem nas ruas são cinzas? As mulheres que vivem dentro dos casúlos multicoloridos também são?
Enquanto Aparecida falava comigo, Danilo, o moço de vinte e poucos anos, andava pela casa como um filho sonolento que acabou de acordar. Papelão em papelão. Pronto para ir para escola, para o trabalho, para esperar em pé o dia seguinte. Aparecida era a mãe de Danilo nas ruas durante o dia. E à noite, quem dava às ordens? Quem dava às aulas? O que faziam do tempo que tinham? A idade dele a metade da dela. Precisavam dos documentos, da identidade, essa era a decisão. Desde quando? Quantas repetidas vezes? O tempo. Nas mãos de Aparecida a providência divina,  pediu que eu lesse  -  A misteriosa providência que permite sofrerem os justos perseguição às mãos dos ímpios, tem sido causa de grande perplexidade a muitos que são fracos na fé. Alguns se dispõe mesmo a lançar de si a confiança em Deus.[…] Deus deu suficientes evidências de seu amor, e não devemos duvidar de Sua bondade por não podermos compreender a operação de Sua providência[…] Jesus sofreu por nós mais do que qualquer de Seus seguidores poderá sofrer pela crueldade de homens ímpios. - O Grande Conflito ,p 47. Carregava aquelas letras de cabeça para baixo, talvez Danilo lesse para ela todas às noites antes de dormir? Onde se escondiam todos os dias que não fosssem aquele?
Combinamos de eu estar lá no dia seguinte, tiraríamos as fotos para os documentos e conversaríamos um pouco mais. Voltei às 16.00hs,  Eram quatro que me esperavam, estava lá um amigo de Danilo que fez amolecer minhas pernas, acelerar o coração. Os olhos dele saltavam com raiva até quase me esbarrar, os dentes trancados nos lábios, acenei com a cabeça e andei em direção ao estacionamento próximo. Era eu um bloco de pernas e braços sem pensamento. Aparecida e Danilo no mesmo compasso. Primeiro, as fotos De Danilo que parecia estar lá por engano, tinha mais gel nos cabelos, mais sola nos sapatos, mais sorriso no rosto. Aparecida e eu, sentamos na entrada de um estacionamento próximo. Poucos carros e a autorização do dono. Ela inicia a conversa de maneira fácil, parece que me esperava para contar da vida, sem parágrafos nem vírgulas, precisava esvaziar-se de tanta história os anos comprimidos num jato de acontecimentos. Começou pedindo  para que eu comprasse bala ou água para venderem no farol. - Revirar o lixo dá doença. O Danilo trabalha como flanelinha, o dinheiro não da pra comer, só pro café. Não pego comida onde eles dão pro pessoal da rua não. Hoje foi a terceira vez. Tô dormindo na ponte de frente do abrigo. Já fui empregada e babá em casa de família. Meu marido morreu, era caminhoneiro. A gente morava em Governador Valadares, morreu de batida de caminhão. Tenho quatro filhos, tudo dele. Eu tava grávida de gemêos quando ele morreu. Tenho uma de 23 e outro com mais de trinta. Os filhos nasceram tudo aqui. Eu morei no Treme-Treme. Não tem o Treme-Treme que foi derrrubado? Foi lá que eu conheci ele , aí nós começamo a namora, nós teve relacão e ele me assumiu. Graças a Deus. O pai dele que não queria que eu morasse com ele. Hoje em dia as família dele não gosta de mim. Já tenho oito netos, meu filho o mais velho é o Ricardo tem 24,  outra tem 23, outra tem 22, outra tem 21, é tudo diferença de um ano. A outra tem  18, e 17. A caçula tem 13 anos. Conto sete. – Tá tudo estudando. Graças a Deus. Vejo todo mundo, todos eles. Não se dou com o marido da Viviane. A minha caçula mora com a Viviane, 13 anos, ela é mais alta do que eu, uma índia, bonitona, ela é uma índia verdadeira, eu sou índia cabocla. Perdi meu apartamento, bati rolo no barraco, o Paulo Maluf que deu. Só que a mulher falou que quando eu tira meus documentos é pra eu ir lá conversar com ela, aqui no Vale do Anhangabaú, onde mexe os negócios do papel, pra ver se pego meu apartamento de volta. Tive ordem de serviço fui mandada embora. Trabalhava no Extra como faxineira. O Danilo vai morá comigo, não usa drogas, só o cigarro. Os cara querem usar droga, dou conselho pra ele não usar. Ele sempre vai atrás de mim. Se nós briga, ele vai ver onde eu tô. Meu marido era bom, me carregava na cacunda, treze anos juntos. E o filho de mais de trinta? Tudo do mesmo marido? A caçula tem treze. Eram gêmeos? Há quantos anos o marido morreu? Ela, quarenta e dois e o mais velho  trinta?  - O meu marido era gaúcho. O espirito dele é vivo no meu coracão. Seu nome era Aires Soares, quando estou nervosa converso com ele. Deus e ele, fecho os olhos e vejo ele. Foi batizado nas águas, vou na Igreja Universal da Praça da Sé. Quero qualquer serviço: de gari, pra fazer faxina, perdi o endereço. Lá no terminal da Mooca, eles ficaram de ver o serviço pra mim e arrumar um quarto, eu tive que me aposenta porque tava com dedo quebrado e o braço também. Aí eles não me deram a minha carteira, foi lá no Extra. Pra busca tenho que pega o trem e o metrô. Eu vou busca, eu era encarregada, preciso volta lá, depois que tirar os documentos eu volto lá. O Danilo tá precisando de chinelo, meu filhos estão criados. Tem uns lá na Paraíba. Eu vou falar com a Viviane, o Danilo pode trabalha pra limpa carro, vou levar ele comigo pra tira os documentos, ele tá como indigente, sem cartão do SUS. Eu mostro meu documento do remédio pra pega comida. Não uso droga nem ele. Ele engravidou a mulher, que traiu ele, e a mãe dele foi pro lado dela, aí só acreditou nele quando viu com  olhos, mas o Danilo já tinha ido embora, largou a família porque ninguém queria acredita nele. Ele morava lá no Ermelino Matarazzo, bairro das Pimentas, ficou assim porque a mulher traiu, ele me chamou para  ver a filha dele. Não quero ver a mãe, nem a ex-mulher, se for ver ela, não vai presta, também vou ter que ver meus ex. A mulher dele não quer ver a cara dele porque ele tá comigo. Eu não conheço ela. Eu já tive vários namorados, por causa da cachaça larguei deles. Antigamente não tinha rapa levando o que é seu, agora os meninos de rua levam tudo, o caminhão leva tudo, não quer saber se tem documento, leva tudo, roupa, documento, vai jogando no caminhão, pegam tudo, por isso tem ladrão. Eu votei nela, falou que ia tirar nós da rua. Esse prefeito aí o Haddad, ele é cruel, não é um prefeito fiel, eu votei nele. Nossos amigos verdadeiros são o Veludo e o Roque. Cachorro toma conta e faz companhia. Eles corria atrás da policia e mordia. Se você puder trazer roupa, o Danilo tem sinusite.
Levo as fotos, as roupas, o chinelo do Danilo, duas refeições. No chão, o papelão e garrafas de bebidas. Disseram que a bebida era dela, a cachaça. Onde estarão? A rua não muda de lugar. O papelão molhado fica, a casa se move. O vaso sanitário continua lá, a tela quadriculada protegendo o terreno baldio também. Quem sabe suas orações, o dia do juízo final, a Providência Divina, a realização de um milagre. Ou, como pedaços do papelão,  dobraram-se, desmancharam-se em água, álcool. Voaram com o vento, como fotografias 3x4 descoladas de um arquivo de firma, de obtuário. Quem sabe Danilo de RG 88.765.456-X e Aparecida, sua noiva, sua menina. Na Penha, no Barroso, na Sé...
  

* O Relato de Aparecida é de meados de 2013. Minha ideologia política não está expressa neste texto.  


Um comentário:

Unknown disse...

Aparecida eh mulher forte e corajosa. Ta sempre lutando pela identidade. Sem esquecer os filhos, tem consciência política e de família. Dureza. Parabéns Bia pelo texto maravilhoso! Marlene Bilenky