sexta-feira, 6 de novembro de 2015

CHRISTIANE


                Uma subida íngreme, três quarteirões e, a minha esquerda,  Avenida Rebouças, mais barulhenta em dias de feriado. Os hospitais agigantam-se e um conjunto de sirenes cria esferas separando os meus ouvidos do mundo. Pelas calçadas os cacos do final de semana acolchoam as pisadas. Um hotel de poucos quartos e de pouco trato faz esquina na Alameda Santos. Encostada a sua parede, uma estatueta de gesso em forma de mulher repousa os seios pixados de vermelho, pedaço de qualquer coisa.  Os carros ali não atingem muita velocidade, avizinham-se os vidros fumês. O próximo trecho é um emparelhamento de pequenos negócios: estacionamentos, lojinhas vendendo objetos de alguma espécie e um tipo de bar. Negócios três por quatro, mesma cor e mesmo formato. Não há memória para lembrá-los.  As bicicletas  harmonizam-se uma quadra acima, bonito ver a felicidade rodando em aros prateados. Do alto do viaduto vejo a rua repleta de homens. Homens de sol e pelos no rosto, que ainda dormem a mesma manhã que já é metade. Alguns poucos começam a abrir os olhos, mas nunca a boca. Aprenderam a guardar dentro dela a fumaça dos cigarros, a falta de dentes e as palavras. Enrolados em cobertores criam uma segunda pele, escudo para todo tipo de tiro. Estes  homens sem nome dormem nos viadutos, nas ruas e nas praças dos homens de grandes nomes, homenageados  em placas azuis, àquelas que nos situam no mundo: Av Brigadeiro Faria Lima, Rua Teodoro Sampaio, Rua Novo Horizonte, Rua Raízes do Brasil, Rua Minas Gerais… A falta de mãe e pátria os esquece no asfalto.
            Nesse dia a rua era deles. As mulheres não estavam, não dormiam e nem por ali andavam. Talvez tivessem saído para espalhar seus seios e amamentar  seus filhos espalhados pela cidade, talvez fossem procurar pelos seios que cedo desencaixaram-se de suas bocas pequenas. Mulheres mães em busca de suas mães a mamar até o fim dos dias, até a eternidade. Ou sentaram suas lágrimas e risadas, gastando as pontas dos dedos no crack, nos baseados, aquecendo a garganta e os órgãos nos goles de álcool, enchendo o nariz de farinha para acolher a alma em algum outro lugar.
         Você não, te vi na contramão da rua, na ciclo faixa,  na hora da volta. Uma olhada rápida, retrocedi alguns passos. Você, desconfiada. Ofereci-me para um papo, os ritmos acelerados. O ponto de táxi era o que tínhamos de mais próximo. Um tempo de ajuste e a sua história era contada de  lentamente como se cada palavra dita fosse uma forma de apagá-la. Desencaixavam-se do todo, um quebra-cabeças sem algumas peças: a falta dos pais, os irmãos que te abandonaram, a perda de algumas posses; tudo era palavra no mesmo instante esquecimento. Então você falou do seu alcoolismo, da sua vontade de ajustes. Te contei histórias e mais histórias, foi assim que nos encontramos. Combinamos  um próximo encontro. Quarta feira rua Augusta com Alameda Santos, às 15hs00. Sabíamos que iríamos. Corri para chegar na hora. Virei na Alameda Santos, meus pensamentos eram de tantas espécies. Caminhei acelerado, lá estava você, não fazíamos parte de nenhum livro. Éramos a história abrindo seus poros. Uma outra respiração. Uma primeira tentativa.

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