Uma subida íngreme, três quarteirões e, a minha esquerda, Avenida Rebouças, mais barulhenta em
dias de feriado. Os hospitais agigantam-se e um conjunto de sirenes cria
esferas separando os meus ouvidos do mundo. Pelas calçadas os cacos do final de
semana acolchoam as pisadas. Um hotel de poucos quartos e de pouco trato faz
esquina na Alameda Santos. Encostada a sua parede, uma estatueta de gesso em
forma de mulher repousa os seios pixados de vermelho, pedaço de qualquer coisa. Os carros ali não atingem muita velocidade,
avizinham-se os vidros fumês. O próximo trecho é um emparelhamento de pequenos
negócios: estacionamentos, lojinhas vendendo objetos de alguma espécie e um
tipo de bar. Negócios três por quatro, mesma cor e mesmo formato. Não há memória
para lembrá-los. As bicicletas harmonizam-se uma quadra acima, bonito
ver a felicidade rodando em aros prateados. Do alto do viaduto vejo a rua
repleta de homens. Homens de sol e pelos no rosto, que ainda dormem a mesma
manhã que já é metade. Alguns poucos começam a abrir os olhos, mas nunca a boca.
Aprenderam a guardar dentro dela a fumaça dos cigarros, a falta de dentes e as
palavras. Enrolados em cobertores criam uma segunda pele, escudo para todo tipo
de tiro. Estes homens sem nome dormem
nos viadutos, nas ruas e nas praças dos homens de grandes nomes, homenageados em placas azuis, àquelas que nos situam
no mundo: Av Brigadeiro Faria Lima, Rua Teodoro Sampaio, Rua Novo Horizonte, Rua
Raízes do Brasil, Rua Minas Gerais… A falta de mãe e pátria os esquece no
asfalto.
Nesse
dia a rua era deles. As mulheres não estavam, não dormiam e nem por ali
andavam. Talvez tivessem saído para espalhar seus seios e amamentar seus filhos espalhados pela cidade,
talvez fossem procurar pelos seios que cedo desencaixaram-se de suas bocas
pequenas. Mulheres mães em busca de suas mães a mamar até o fim dos dias, até a
eternidade. Ou sentaram suas lágrimas e risadas, gastando as pontas dos dedos
no crack, nos baseados, aquecendo a garganta e os órgãos nos goles de álcool, enchendo
o nariz de farinha para acolher a alma em algum outro lugar.
Você
não, te vi na contramão da rua, na ciclo faixa, na hora da volta. Uma olhada rápida, retrocedi
alguns passos. Você, desconfiada. Ofereci-me para um papo, os ritmos acelerados.
O ponto de táxi era o que tínhamos de mais próximo. Um tempo de ajuste e a sua história
era contada de lentamente como se cada palavra dita fosse uma forma de
apagá-la. Desencaixavam-se do todo, um quebra-cabeças sem algumas peças: a falta dos pais, os irmãos que
te abandonaram, a perda de algumas posses; tudo era palavra no mesmo instante esquecimento. Então você falou
do seu alcoolismo, da sua vontade de ajustes. Te contei histórias e mais histórias, foi assim que nos encontramos. Combinamos um próximo encontro. Quarta feira rua Augusta com Alameda Santos, às 15hs00.
Sabíamos que iríamos. Corri para chegar na hora. Virei na Alameda Santos, meus pensamentos eram de tantas espécies. Caminhei
acelerado, lá estava você, não fazíamos parte de nenhum livro. Éramos a história abrindo seus poros. Uma outra respiração. Uma primeira tentativa.
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