sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

AINDA NÃO CHEGOU O NATAL

    Eram três que ficaram sem nome. Mais dois. Três crianças e dois adultos. O dela era Gabriela. Embaixo da ponte tinha árvore de Natal, fogareiro, garrafa de água. Tinha colchão também, carrocinha, carrinho de bebê e boneca Suzi. Tinha o bebê. Panela cozinhando arroz. Paraisópolis era a casa, o trabalho a ponte. A pequena quem me contou e a vó tentou jogar palavra por cima, tapar a fala, mas a menina já tinha começado. Os olhares se engancharam. - Tia, tô na escola. - Que escola, menina? - Ele vai pra creche. - Que creche, menina? Umas palavras que não  grudavam nas outras. A vó era brava. - Pro próximo ano, perto de casa, Gabriela falou. A menina escondeu o olhar por trás das pálpebras. - Há quanto tempo tamo aqui? O irmãozinho via as fotos no meu celular, apertava o botão e subia no meu colo. Movimentos e olhares. Mãe, vó, ela e eu. O que era tempo pra ela? - Faz tempo, ela mesma respondia. Eu repetia a pergunta da creche já sabendo que ali tinha um furo que não era o que elas tentavam tapar. A creche era do lado da casa, a escola também. Existem tantos tipos de furo, meu Deus! A pobreza escondendo-se e disfarçando-se de pobreza maior - Será que dá tempo do senhor tapar? É tanto pedido perto do Natal!
    Paraisópolis era a casa, o bairro, o automóvel na porta, a geladeira repleta, a luz, a água, as roupas dentro do armário. Paraisópolis era a viagem de férias, o fim de semana no cinema, o travesseiro, o cobertor. Paraisópolis era muito. A conta no banco, a poupança, a certeza de um 2016 feliz. Era o Rivrotil, o Dormonid, e o Donaren. A menina nem sabia. Tentavam esconder seus tesouros debaixo do colchão furado.
    Eles na curva, em cima o viaduto. Os filhos vinham trabalhar com a mãe, a avó e o avô, que àquela hora estava deitado no colchão, só observava. A carroça em frente não era veículo de trabalho, era armário. Será por que não poderiam ficar os pequenos em casa com a vó enquanto a mãe faxinava, estudava? Vale brincar de sonhar? O terceiro filho ainda mamava, um único mês ele tinha. – Eu queria um barraco, esse era o pedido da mãe. Paraisópolis não cabia ali. Era muito. Uma escola, a creche que estava por vir. O que eu contaria se soubesse que eles já tinham um barraco? Por ali uma garrafa de água, o mamá debaixo da ponte, uma panela de arroz, um carrinho de bebê, três colchões. Tinha rato, frio, chuva de vento. Tinha três bebês, dois deles que já aprenderam a falar, mas que não falassem de um jeito a verdade. Os ruídos dos carros, as garrafas arremessadas e os drogados asseguravam o trabalho dos seis. O que pensaria eu se soubesse que não eram de um todo moradoras de rua? Gabriela perguntava, mas não dizia. Os olhos de Gabriela.
    Faltava coisa. Coisa que é gente. Os três pais: o da pensão que era pouca, pai do menino. O que abandonou a filha. E o do bebê, que morreu atropelado. Sobrava uma vó e um vô no colchão. Um corpo com preguiça com aquele cansaço que se estende. Sobrava filho: um mês, três e cinco anos, essa era a idade. Sobrava idade: Sessenta e sessenta e três eram números dos pais.  E tinha ela, a Gabriela, de vinte e dois.
   A vó me falou que a comida acabou e que tava todo mundo com fome. - O super-mercado é ali do outro lado, depois do viaduto, uma rua ali no meio. Avenida dos Carinás, entrei. Arroz, feijão, carne, farinha, banana, suco, verdura. Eram seis, e aquilo daria para quantas refeições? Bombons e salgadinhos ajudavam o gosto bom na boca das crianças. Eram mais quatro os homens, moradores de rua na frente do super-mercado. Voltei. Dois dias com refeição? O estômago continuaria fazendo parte do corpo.
   De dentro de um carro alguém estendeu o braço e doou quatro pacotes de bolachas. Era uma mulher com olhar assustado. Abriu uma partezinha da janela. De longe o espaço não era neutro. De perto era a Gabriela, seus três filhos e os avôs.






Um comentário:

Ivani Ollier disse...

Sempre precisa, econômica e contundente! Adoro!